Vários veículos de comunicação têm noticiado de forma bastante contundente severas críticas aos policiais militares que efetuaram o disparo que foi a causa da morte de um estudante de medicina no Estado de São Paulo. Até aí você já sabe e, exatamente por isso, também sabe que não é do que eu quero tratar.
O caso aqui vai ser a minha justificativa da vez para pensarmos como a nossa sociedade funciona. E para isso quero destacar alguns pontos.
Em primeiro lugar, é muito interessante que todas as manchetes falam no “estudante de medicina” morto pela Polícia Militar de São Paulo (PMSP). Interessante porque os títulos já pretendem transmitir uma mensagem que te leve a concluir que a entidade “estudante de medicina” é sacra o suficiente para não cometer crimes e, portanto, você precisa concluir que a ação da polícia foi injusta.
Ocorre que estudantes de medicina são pessoas e pessoas podem cometer atos lícitos e ilícitos como quaisquer outras, assim como eu e você. Entretanto, um “estudante de medicina” não é “qualquer pessoa”, mas alguém que merece ser preservado, alguém “com futuro”, talvez alguém que estude no Morumbi e, via de consequência, deve ser imune às intempéries do mundo.
Digo isso porque se o adjetivo dele fosse “morador do Jardim Ângela” ao invés de “estudante de medicina” tenho a sensação de que o espanto do noticiário não seria o mesmo e, provavelmente, eu não estaria aqui falando disso. Ou seja, somos sim socialmente sectários e quando a “vítima” sai do script esperado causa comoção e dá ibope.
Vamos conferir? Daniella Perez até hoje aparece vez ou outra na TV. Maria da Penha virou nome de lei. Joana Maranhão também. Menino Bernardo causou comoção nacional e virou lei. Carolina Dieckmann idem. Casal Nardoni. Percebeu que a fama da vítima tem um padrão? E eu aposto que você conhece todos estes.
E a Ágatha Félix? Lembra do seu homicídio? E o do João Pedro? E da Kethlen Romeu? Lembra não né... eu imagino que não. Esses não viraram lei e nem incharam o noticiário policial (e olha que eu puxei de memória uns casos “famosinhos”).
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A culpa não é sua. Eles deram uma notícia no jornal, com uma ou outra repetição e passou. Há muitos outros que ninguém vai lembrar e nem vão virar notícia.
Tem padrão. E o pior de tudo isso é o que me leva ao segundo ponto.
Esse padrão é social e não da polícia. Esta premissa é muito importante de ser estabelecida, de modo a entender este fenômeno social da divulgação destes casos.
Socialmente falando há pessoas que causam mais impacto do que outras e isso reflete no comportamento destas pessoas com os outros e com o Estado. Neste caso não foi diferente. O “estudante” estava alocado na “caixinha” das pessoas que “merecem ser lembradas” e, por isso, pode se dar ao luxo de “perder o controle”.
Não estou aqui querendo santificar os policiais, até porque eu não conheço os autos do processo. Entretanto, há imagens do “estudante” batendo na viatura, afrontando os policiais e entrando em luta corporal com eles.
Pega estas mesmas imagens e muda o personagem para um moleque de periferia, que não estuda, tem o cabelo pintado de amarelo/branco, com umas argolas douradas bem bregas na orelha e umas roupas 10 números maior que o dele. Eu sei que você consegue imaginar a cena.
E aí eu te pergunto: a comoção seria a mesma? Imagina este moleque no Jardim Ângela dando um “tapão” na viatura e entrando em luta corporal com a PM. Eu garanto que as mesmas pessoas que estão chocadas com a PM agora estariam bradando que a PM “deu mole até demais”.
O julgamento é exatamente como Césare Lombroso propôs em 1876: na base do “cara-crachá”. E isso me leva para o terceiro e último ponto.
A legítima defesa é um instituto do direito penal que todo mundo sabe que existe e, curiosamente, ao mesmo tempo quase ninguém sabe os detalhes. Uma das suas peculiaridades é que ela autoriza a ação contra a “injusta agressão”.
Atenta para o termo: “injusta agressão”. A lei não diz “ilícita agressão”. É diferente. Diante de uma injusta agressão (que não precisa ser sequer ilícita), qualquer pessoa pode agir usando, moderadamente, os meios de que dispõe para fazer cessar a agressão.
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Até onde nos consta, o PM atirou uma única vez. Se isso não é uso moderado da força, então eu não tenho mais a menor ideia do que possa ser.
A questão toda é que a gente está “acostumado” que há uma classe de pessoas que devem temer menos o uso da força do que outras. Por isso que vez ou outra a gente vê uns playboys de zona sul ou empresários de Alphaville, criados em apartamento e usando roupa de boutique, ofendendo e agredindo policiais militares em plena luz do dia e sem qualquer temor das consequências.
Talvez isso ocorra porque o PM pensa 100 vezes antes de repelir esta injusta agressão, considerando que esta injusta agressão dá TV, afastamento cautelar (como neste caso do momento), corregedoria e se o moleque for “filho de alguém” aí dá até perda do cargo.
Eu já tive o desprazer de lecionar Direito em instituição de ensino que fornecia curso de medicina e eu sou obrigado, por experiência própria, a ficar desconfiado da narrativa da imprensa. Lembro de ficar chocado como o discurso em volta dos alunos de medicina era todo voltado para fazê-los crer que, de fato, eles são mais especiais do que as demais pessoas e podem ajustar o mundo às suas vontades.
Apenas para exemplificar, em uma destas situações, alguns alunos foram reclamar da minha turma e requisitaram (observe, eles não pediram, eles mandaram) a coordenação (do Direito!) me mudar de lugar no campus porque a saída da minha turma os estava incomodando. Adivinha quem ficou sem sala?
Em outra situação, os magnânimos acadêmicos de medicina exigiram estacionamento próprio separado dos demais e, obviamente, mais bem localizado. Preciso dizer que deu certo?
Para mostrar o reflexo disso na vida profissional, anos depois, atuando como procurador do Conselho Regional de Enfermagem de Minas Gerais me deparei com um ofício da Presidência do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais. O conteúdo: os médicos estavam reclamando ao CRM/MG que o Conselho de Enfermagem estava intimando médicos em processos éticos para prestar depoimento e eles não se sentiam obrigados a atender autoridades federais, já que não eram autoridades federais de medicina.
Percebeu o tamanho do fosso?
Às vezes, se fôssemos educados o suficiente para entender que a autoridade, dentro das suas atribuições legais, tem poder de mando e que a ela se submetem o moleque de cabelo colorido do Jardim Ângela e o estudando de medicina do Morumbi, a vida seria mais fácil.
A regra no mundo civilizado é simples: se a polícia mandar parar é para parar, ainda que você seja “estudante de medicina”. Se a ordem for desobedecida, há autorização legal para o uso da força, ainda que seja contra o “estudante de medicina”. Isso chama “Estado de Direito”. Infelizmente, alguns acadêmicos e profissionais da medicina ainda vivem em um mundo dinástico e aí realmente dá conflito de vez em quando.