Mais lidas
compartilhe
SIGA NO
As casas de apostas deixaram de ser assunto de nicho para virar parte do cotidiano brasileiro. Estão nas transmissões esportivas, nos intervalos da TV, nos patrocínios de clubes e até no vocabulário popular. “Fazer uma bet” virou sinônimo de testar a sorte, ou o azar, com apenas alguns cliques. E, diante desse novo cenário, a Caixa Econômica Federal, tradicionalmente dona das loterias oficiais, decidiu entrar no jogo.
A ideia de criar uma plataforma própria de apostas esportivas, como estão chamando de Bet da Caixa, trouxe à tona uma discussão que vai muito além das telas: qual é o limite entre arrecadar dinheiro e incentivar o vício?Como vai funcionar a casa de apostas da Caixa?
A aposta da Caixa é unir credibilidade e familiaridade. O anunciado até agora é que a nova plataforma seria lançada até o final de novembro de 2025.
A ideia é que a plataforma funcione como um Super App oficial, onde o usuário possa fazer previsões de resultados esportivos, principalmente em jogos de futebol. Diferente das bets privadas, a Bet da Caixa deve destinar parte da arrecadação para programas sociais, como já acontece com as loterias.
À primeira vista, o banco quer vender a imagem de uma aposta responsável e nacional, diferente das plataformas internacionais que movimentam bilhões sem devolver quase nada à economia brasileira. O discurso é de que, ao apostar com a Caixa, o cidadão ajuda a financiar programas públicos, da mesma forma que ao jogar na Mega-Sena. Mas a gente sabe bem que, no fundo, é muito diferente.Loteria x Bet: o que muda de fato?
Por muito tempo, o brasileiro que queria tentar a sorte só tinha uma opção legal: as loterias da Caixa. Jogos como Mega-Sena, Quina e Lotofácil movimentaram, só no último ano, R$23,4 bilhões. Desse total, R$9,2 bilhões (quase 40%) foram destinados a programas sociais do governo federal, nas áreas de esporte, cultura, segurança pública, educação e saúde.
Mas o cenário começou a mudar rapidamente. Com a explosão das plataformas de apostas esportivas online, o público se dividiu e a arrecadação das loterias caiu cerca de 50% em poucos anos.
Enquanto os apostadores de loteria costumam ter mais de 45 anos, o público das bets é majoritariamente jovem: menos de 35 anos. E essa nova geração aposta com mais frequência, mais emoção e menos paciência.
Além disso, o apelo das bets é bem diferente. Elas vendem a sensação de controle e a ideia de que, se você entende de futebol, pode prever o resultado. Mas a verdade é que a incerteza continua sendo o coração do jogo.
O peso da arrecadação (e dos impostos)
Segundo dados da Receita Federal, em 2024 foram recolhidos R$4,73 bilhões em tributos sobre jogos e, pela primeira vez, as apostas esportivas (R$2,6 bilhões) superaram as loterias (R$2,1 bilhões) em arrecadação.
Ou seja, o jogo mudou, literalmente. O dinheiro agora está nas plataformas digitais, e não mais nas casas lotéricas da esquina. Mas há uma diferença importante: enquanto a loteria é um produto regulamentado e operado pelo Estado, as bets são empresas privadas, muitas com sede fora do Brasil.
Isso significa que boa parte do dinheiro que circula nelas vai para fora do país. E é justamente esse o ponto que a Caixa usa de argumento, mas até que ponto a arrecadação pública supera o risco do vício?
A “Bet da Caixa”: aposta alta em terreno delicado
Por trás dos bilhões arrecadados, existe um problema, antes silencioso, mas que agora está mais escancarado que nunca: o vício em apostas. A facilidade de acesso e o apelo visual das plataformas transformaram o jogo em um passatempo de risco. Basta um clique para apostar e outro para perder o controle.
No Brasil, ainda há pouca estrutura pública para lidar com os impactos psicológicos e financeiros das apostas. Diferente do álcool e do cigarro, o jogo não carrega avisos sobre os perigos do uso excessivo. Pelo contrário, é vendido com cores vibrantes, bônus de boas-vindas e promessas de lucro rápido.
E aí vêm a contradição. Enquanto o Estado comemora a arrecadação, ele também precisa lidar com o endividamento e o adoecimento de uma geração que vê no jogo uma forma de escape financeiro.
E o projeto vai pra frente mesmo?
A decisão da Caixa Econômica Federal de lançar sua própria casa de apostas esportivas acendeu um alerta. De um lado, senadores afirmaram que a entrada de um banco público nesse mercado pode colocar em xeque o papel social da instituição.
Em outras palavras: pode um banco estatal que existe para o desenvolvimento do país lucrar com um produto que, potencialmente, causa vício e endividamento?
E o impasse político é real. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já sinalizou resistência à proliferação das bets no país. Ele chegou a dizer que pode revogar a autorização para operação dessas plataformas caso perceba que elas estão causando danos às finanças pessoais dos brasileiros, o que já está acontecendo…
Leia mais
-
Dívida de jogo: o círculo vicioso que leva do endividamento à tragédia
-
Mulher descobre que ex acumulou R$ 4 mil em dívida em apostas na conta dela
-
Filho confessa que matou a professora após discussão por dívida de jogo
Conclusão: quando o jogo é mais do que sorte
As bets parecem ter chegado para ficar. Mas, ao apostar nesse mercado, o Estado também assume um novo tipo de responsabilidade. Não se trata apenas de arrecadar mais, mas de repensar o papel social do jogo.
Afinal, quando o entretenimento se mistura com o desespero financeiro, a linha entre diversão e dependência fica cada vez mais fina. O jogo já deixou de ser apenas um passatempo e virou um hábito. E é aí que o perigo se instala: quando a aposta vira rotina, o prazer da vitória dá lugar à ansiedade da próxima rodada.
O mesmo banco que deveria promover educação financeira e inclusão social agora se coloca do outro lado do balcão, oferecendo uma nova forma de endividamento com selo de confiança. E, enquanto o banco comemora a arrecadação e quer o controle sobre o mercado, quem paga a conta é o cidadão que acredita que uma odd boa pode resolver a vida.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
