A cada ano, o carnaval invade mais as ruas e avenidas de todo o Brasil. Não se trata de fenômeno recente, mas tem ganhado novos espaços, embora mantenha centralidade turística no eixo Recife/Olinda, Salvador e Rio de Janeiro. O que não parece mudar, apesar do crescente aumento do número de blocos de rua, é a segregação racial e social. O carnaval, mesmo sendo uma festa plural, aberta e diversa, leva, com requintes alegóricos, o DNA da nossa sociedade para o asfalto.

O podcast Radio Novelo lançou, a dois dias da abertura oficial do carnaval de 2024, o episódio Blocos, em que traz duas histórias distintas sobre a formação de blocos de carnaval. Uma delas narra a história de Aldri Anunciação, um jovem negro, nascido em Salvador, oriundo de um bairro pobre (Engenho Velho de Brotas) que, na adolescência, graças à ascensão econômica dos pais, muda com sua mãe e seus dois irmãos para o Rio Vermelho – bairro “vaidoso”, nas palavras do próprio Aldri.

Aldri e seus irmãos ingressam em uma “escola chique”, no bairro “vaidoso” e, na época da abertura para a aquisição dos abadás dos famosos trios elétricos, inscrevem-se para participarem de um bloco de trio. Aqui cabe um parêntese para uma contextualização histórica: Salvador, nos anos 80 e 90, era dividida em (i) blocos de trio – Banda Eva tinha o bloco Eva, a banda Beijo tinha o bloco Beijo etc.); e (ii) blocos afro – como exemplos mais famosos, Filhos de Gandhi, Ilê Aiyê, Olodum.



Os blocos de trio eram “blocos de gente bonita”, como definiu Aldri, e não bastava ter poder aquisitivo; não podia ter “melanina acentuada”. Para se inscrever para comprar um abadá, era necessário preencher uma ficha dando seus dados socioeconômicos e sua cor/raça. Nos blocos de trio, os negros trabalhavam como ambulantes ou segurando as cordas para que a turma branca dos abadás pudesse curtir a festa. Aldir e seus dois irmãos tentaram, por duas vezes, comprar abadás, e seus pedidos foram negados, enquanto os de seus colegas brancos eram aceitos.

Alcindo da Anunciação, pai de Aldri, é oriundo do Beco de São José da Paz, no bairro da Saúde, em Salvador. Um local de pessoas que viviam em condições bem pobres. Foi camelô, vendedor ambulante, mas se formou em Direito e tornou-se concursado da Polícia Civil como perito criminal. Homem politicamente ativo, tornou-se deputado estadual, em 1986 e o único negro na elaboração da Constituição do Estado da Bahia. É dele o feito de se ter a única constituição estadual do país com um capítulo (de direitos) DO NEGRO – cap. XXIII, artigos 286 a 290.

Alcindo enfrentou o preconceito que assombrou a vida de seus filhos e decidiu criar um bloco de trio, o Realce. Com isso, ele levou, para o mesmo espaço onde desfilavam os blocos dos brancos, os negros, que antes só participavam com seu trabalho. Segundo relato do Aldir, no podcast da Radio Novelo, Realce tornou-se um dos maiores blocos de trio da década de 90, além de ser, por sua característica social, o único com maior predominância de pardos e pretos “dentro da corda”.

A história de Aldir, no estado com maior proporção da população preta e parda, segundo o último Censo Demográfico (2022), é o retrato da perpetuação da segregação racial do país, que disfarça alegoricamente seu preconceito. Assim como Aldri definiu o conceito da época em relação aos blocos de trio, esse mesmo conceito permanece até hoje: os blocos de carnaval, com ou sem trio, dos bairros vaidosos, são representados por pessoas “bonitas”. Não incomum escutar a descrição de que “o bloco tal estava muito bonito, muito bem frequentado”.

No entanto, não podemos negar que avanços têm sido feitos, mesmo que em compasso de espera. As marchinhas de carnaval, como Maria sapatão, Cabeleira do Zezé, O teu cabelo etc., foram abolidas das ruas, e o funk, o pagode, o forró, além dos tradicionais estilos de samba, frevo e axé dominam a cena musical. A profusão de tipos diferentes de blocos, com bandeiras específicas, também é uma marca que, dos anos 2000 em diante, vem sendo impressa na cultural do carnaval.

Mas o carnaval acaba e “Quando pinta em Copacabana / A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba / A caravana do Irajá, o comboio da Penha / Não há barreira que retenha esses estranhos / Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho / A caminho do Jardim de Alá / É o bicho, é o buchicho, é a charanga”, como descreve sensivelmente Chico Buarque em sua letra As Caravanas, a tensão social volta com força.

No Brasil, onde os bairros vaidosos, a depender da topografia, são cercados por favelas e “com negros torsos nus deixam em polvorosa / A gente ordeira e virtuosa que apela / Pra polícia despachar de volta / O populacho pra favela / Ou pra Benguela, ou pra Guiné” - ainda no ritmo de As Caravanas -, a tensa convivência é amenizada, por alguns dias, em atmosfera de confetes, máscaras, glitters, cordialidade e muita alegria, mas com “cada um no seu bloquinho”.

A bem da verdade é que, nem mesmo o carnaval mudando as roupagens, trocando as máscaras, misturando ritmos, corpos e suor, expandindo suas formas de manifestação e incluindo minorias e bandeiras identitárias é capaz de promover grandes rupturas no preconceito, no racismo, na segregação e na divisão socioeconômica e cultural do País. O asfalto só alegoriza nossas disparidades!

Nesse último domingo, no fim das festividades carnavalescas, o Instituto Conhecimento Libertas divulgou um documentário com o jovem vereador negro, Renato Freitas, que há anos sofre perseguição e explícitas formas de violência. Em determinado momento de sua narrativa, Freitas diz que “a verdade é como o Sol; mesmo que a tempestade seja agressiva e pareça durar uma eternidade, como é a tempestade das mentiras e do linchamento, o Sol está lá por detrás, aguardando o momento.” Que esse mesmo Sol, um dia, brilhe para todos!

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