“Pobres criaturas”, “Vidas passadas”, “Priscila”, “Segredos de um escândalo” e “Anatomia de uma queda” são alguns, e talvez os principais, filmes dessa nova safra que a pós-pandemia trouxe como renascimento das salas de cinema. No streaming, temos outros que poderia listar aqui, mas a sétima arte voltou com a força feminina no centro. Seja na direção, nos roteiros ou na atuação, as mulheres estão ocupando papéis e incomodando. É a arte escancarando a vida!

 

Como pano de fundo, de alguma maneira, é o desejo feminino que grita em todos esses filmes. Em “Pobres criaturas” reside algo do intrigante conto do Scott Fitzgerald (O curioso caso de Benjamin Button), em uma inversão da idade – um corpo de mulher em uma mente de criança que, com o passar do tempo, se desabrocha e busca viver seus instintos sem qualquer preconceito. Filme belíssimo, em que a protagonista carrega forte senso de liberdade e de busca pelo prazer e, ao mesmo tempo, senso de igualdade e ausência de preconceito.

 

Em “Vidas passadas”, uma coreana, filha de pais artistas, muda-se com a família para os Estados Unidos e lá se torna, na fase adulta, uma típica nova-iorquina. A história fala de um desejo vivido no início da adolescência, ou final da infância, e que se perde com o tempo, renasce em outra relação, mas se confunde no reencontro. “Vidas passadas” mostra o desejo feminino em seus instintos mais tenros. E traz uma mulher livre e comprometida com sua veia literária e sua sensibilidade.

 



 

 

“Priscila” é biográfico e traz a sensível direção de Sofia Copolla. A herança genética se faz presente na vida dessa notável diretora, que certamente se implicou com o feminino na narrativa preparada por Priscila Presley. Quem não se espanta com um Elvis seduzindo uma menina e, na fase mais adulta, não conseguindo manter relações sexuais com essa que veio a se tornar sua mulher? Priscila sucumbiu ao seu ídolo, submeteu-se aos seus mandos, mas rompeu e foi viver sua liberdade.

 

“Segredos de um escândalo”, assim como “Priscila”, baseia-se em uma história real, mas, diferentemente do segundo, traz algo de enigmático do início ao fim. Não é para menos, uma vez que a pedofilia, tradicionalmente, ocorre do homem com a criança, mas, nesse, a protagonista é uma mulher. E uma mulher que abre mão de sua família original, vai viver com um infanto-juvenil e com ele constitui nova família. Falamos de uma mulher sedutora, dominadora e controladora.

Assim também temos a protagonista de “Anatomia de uma queda”. Uma mulher que, além de na relação conjugal ter mais sucesso profissional que seu cônjuge, coloca a família em segundo plano. Uma mulher mais voltada para seus desejos. “Anatomia de uma queda” leva ao extremo os ônus das escolhas femininas para além da jornada casa e família, em um modelo de relacionamento cujos homens não conseguem lidar com o sucesso profissional das mulheres. Algo incomum?

 

Certa vez, o psicanalista Contardo Caligaris, em uma de suas brilhantes colunas no jornal Folha de São Paulo, escreveu que “nem sempre a escolha do desejo é a melhor”. De fato, alguns desses filmes nos sugerem exatamente isso, mas o ponto do psicanalista não envolve o aspecto fundamental que permeia muitos dos filmes acima citados: “quão preparados estão os homens para lidarem com esse universo feminino desejoso de liberdade, novos espaços e busca por igualdade (?)”.

 

Chama atenção tratarem-se de filmes que contam com roteiros e protagonistas que sinalizam, do Oriente ao Ocidente, os incômodos que permeiam a desconfortável posição da mulher nas sociedades. Fruto disso é a crescente violência que se impõe às mulheres em resposta aos seus movimentos expansionistas, como o feminicídio no Brasil, os estupros na Índia e os apedrejamentos até a morte em países muçulmanos, como Sudão e Afeganistão.

 

As estatísticas sobre violência contra a mulher ainda são escassas na maior parte do mundo. A iniciativa da ONU Mulheres, organismo das Nações Unidas responsável pela busca pela igualdade de gênero e empoderamento feminino, teve seu início de funcionamento em 2011. No Brasil, em 2003, instituiu-se a Secretaria de Política para as Mulheres (SPM), vinculada à Presidência da República, mas, até a constituição da ONU Mulheres, o país caminhava praticamente às cegas.

 

Do ponto de vista de geração de estatísticas, somente em janeiro de 2016 o Conselho Nacional do Ministério Público aprovou a proposta de resolução que instituía o Cadastro Nacional de Casos de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, instrumento para consolidar todas as informações processuais relativas a casos de violência doméstica e familiar contra mulheres.

 

Em março do referido ano, criou-se o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), instância aglutinadora das estatísticas oficiais sobre a violência contra a mulher, além de estar à frente de projetos de pesquisa sobre políticas de prevenção e de combate à violência e da proposição de indicadores específicos para monitorar e avaliar as informações e a qualidade das políticas propostas.

 

O DataSenado, em parceria com o OMV, produz pesquisa de opinião, em âmbito nacional, sobre violência doméstica e familiar contra a mulher, cujo público-alvo são mulheres de 16 anos de idade ou mais. A última pesquisa foi realizada entre agosto e setembro de 2023 e destacou-se pelo aumento de sua representatividade.

 

De acordo com a pesquisa, do total de mulheres entrevistadas, 30% já sofreram algum tipo de violência doméstica ou familiar, sendo que a grande maioria (89%) foi submetida à violência psicológica e 76%, física; 34% sofreram violência patrimonial e 25%, violência sexual. Mais impressionante: 73% das mulheres não denunciam a violência sofrida por medo do agressor.

 

A violência tem aspectos socioeconômicos bem definidos: aumenta entre as mulheres com pior condição socioeconômica, é mais concentrada entre as mulheres pardas e pretas em relação às brancas, e nas regiões Nordeste e Centro-Oeste em relação às demais, em especial à região Sul.

 

Se o cinema, por si só, choca ou causa incômodo com cenas de sexo ou expressões do desejo feminino, a vida real mostra que a busca por espaço e, em especial, pelas diversas formas de firmação, ainda é desafio difícil até de se narrar e mensurar.

 

Às mulheres, deixo aqui meu desejo de que o medo não faça morada em seus corpos e mentes, pois algo pujante, no nosso íntimo, pede para voar cada vez mais alto! E o nome disso é liberdade!

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