Em 2009, o documentarista Scott Harper produziu, para a rede de televisão canadense CTV, o documentário “Lost adventures of childhood” – (Aventuras perdidas da infância, em tradução livre), em que destacava a preocupação de psicólogos e outros especialistas com a obsessão dos pais em relação à formação dos filhos e ao medo de deixá-los brincarem livremente nas ruas. Temos, no mínimo, duas recentes gerações que desconhecem o que é o livre brincar e a criatividade.
Em “As aventuras perdidas da infância”, há quase duas décadas, algumas escolas canadenses já contavam com webcam nas salas de aula e nos espaços das escolas, a fim de que os pais acompanhassem a vida de seus filhos em tempo real; as colônias de férias precisavam levar fotógrafos para registrarem os filhos e enviarem imagens para os pais; diversas formas de controle e fim da liberdade passaram a dominar as cenas da infância, em um país com elevado índice de desenvolvimento educacional.
Ainda no documentário, retratava-se que, em Toronto, algumas escolas criaram uma regra que proibia crianças menores de 12 anos de irem ou voltarem da escola desacompanhadas de algum adulto. O prazer simples e mágico de ser criança e brincar desapareceu; brincar livremente tornou-se perigoso, pois, além de tudo, não se podia avaliar sua importância. Com o fim da ludicidade veio a era dos “hiperpais”, que se empenhavam exasperadamente em medir o sucesso dos filhos.
Para o premiado jornalista Carl Honoré, um dos entrevistados de destaque do documentário, a pressão exercida sobre as crianças tem exigido delas mais perfeição e menos criatividade: “elas não têm tempo ou espaço para explorar o mundo, assumir riscos e cometer erros; não aprendem a pensar por si mesmas, apenas fazerem o que lhes dizem”. Praticamente, já contamos com duas gerações criadas para serem um sucesso e gerarem troféus narcísicos para seus pais.
O documentário é um primor de insights sobre os malefícios da “nova forma” de se criar filhos nas últimas décadas. Aponta como a infância vem sendo marcada pela ausência da infância, pela falta de exposição das crianças ao brincar, correr, pular e fazer as tais traquinagens que deixam os pais de cabelo em pé. No entanto, indica que o ilusório cenário do filho esportista competitivo cai por terra abaixo aos 13 anos de idade, quando 70% desistem do esporte por exaustão e excesso de pressão.
O vazio insustentável dos pais precisa ser preenchido pelo tempo ocupado dos filhos e, mais do que isso, pela alta performance dos filhos em estudo de várias línguas estrangeiras, pela prática de esporte e pelo bom desempenho escolar. Os filhos tornaram-se os “troféus egoicos” dos pais no capitalismo pós-contemporâneo.
Ao movimento do fim da liberdade das crianças, soma-se o crescimento do uso indiscriminado de tecnologia, desde as mais tenras idades. A situação tem se agravado consideravelmente, ao longo das duas últimas décadas, ao ponto da Organização Mundial de Saúde ter incluído, em 2018, o transtorno dos jogos eletrônicos (“game disorder”) na sua Classificação Internacional de Doenças - CID.
O famoso psicólogo e professor da Escola de Negócios Stern da Universidade de Nova Iorque, Jonathan Haidt, em seu mais recente livro “A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais”, propõe a proibição das redes sociais para menores de 16 anos de idade e sugere uma relação causal direta entre doenças mentais e excesso de acesso a smartphones e redes sociais desde muito cedo.
Hoje, o que tira o sono dos pais é o adoecimento psíquico dos filhos. E essa realidade do adoecimento não é privilégio somente daqueles que têm “hiperpais” que se dedicam ao sucesso de seus filhos. Acomete todas as classes sociais, por motivos distintos. Para os mais pobres, ao contrário, os problemas são de natureza inversa, ou seja, de ausência de estímulos que os motivem a seguirem com os estudos e a terem oportunidades de praticarem esportes.
Se pensarmos nas dificuldades que a falta de acesso a melhores oportunidades trazem para o desempenho das crianças brasileiras, os dados recentes do estudo “Perfil Síntese da Primeira Infância e Famílias no Cadastro Único”, publicado pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, só servem para jogar uma pá de cal na impossibilidade de rompermos os abismos sociais que moldam gerações, há décadas. E as redes sociais servem para aflorar as diferenças e promover as doenças.
Segundo o estudo, cerca de 55,4% das crianças brasileiras entre 0 e 6 anos de idade são oriundas de famílias cuja renda per capita é inferior a R$ 600 e precisam de recursos de programas sociais para poderem estudar. Na verdade, desse contingente, que corresponde a 10.033.856 crianças, 80% viviam com renda per capita de até R$ 218; e os 20% restantes, com renda entre R$ 218,01 e R$ 600.
Três quartos (75%) dessas crianças são oriundas de família monoparental, em sua maioria representadas por mães solo, de cor parda e na faixa etária de 25 a 34 anos. Quase metade (43%) dessas crianças vivem em famílias sem nenhuma fonte de renda e cujo responsável tem ensino médio completo (46%) ou incompleto (51%).
O que esperar do retorno da infância dessas crianças com baixa assistência e ausente capacidade de estímulo? Quão contrastantes são essas realidades que, por caminhos bem distintos, estão criando pessoas inaptas para lidar com um futuro incerto, competitivo e desacolhedor? Estou poupando nossa reflexão dos cenários de guerra que hoje afetam direta e severamente milhões de crianças no mundo.
Em um mundo cujos estímulos tecnológicos tolhem a capacidade de viver a liberdade da infância e cuja falta de recursos básicos destrói a capacidade das crianças romperem com seus ciclos autoalimentados de pobreza e relento, como acreditar que as próximas décadas construirão sociedades de bem-estar social?
Se, por um lado, as crianças da elite são hiperestimuladas, por outro, não são mais capazes de aprenderem sobre cooperação, comunicação, formas criativas de solucionar problemas e conflitos, habilidades interpessoais e sociais. E em que mundo e em que momento as crianças privilegiadas conseguirão lidar com aquelas outras que foram alijadas das construções sociais que molduraram suas possibilidades de acesso a melhores condições de vida e bem-estar?