Está em cartaz o filme “Back to Black”, do diretor Sam Taylor-Johnson, que narra a história da cantora e compositora inglesa Amy Winehouse (1983-2011), nos seus últimos dez anos de vida. Tive o privilégio de assistir a um show de Amy, em 2011, ano de sua morte. Apesar de sua frágil condição física, recebi cada som emitido por sua indescritível voz como um afago no coração. A irreverência de Amy dialoga com meus mais íntimos desejos de liberdade. Amy cantava a pulsão livre do viver.
Resumidamente, para quem não é “adicta” da Amy como sou, diria que tivemos o privilégio de, em plena decadência da música que pulsa da alma, conhecermos a melhor expressão do jazz e do soul do século XXI, ao menos até o momento. Como disse Tony Bennet, “Amy era uma verdadeira cantora de jazz (...), ela deveria ser tratada como Ella Fitzgerald, como Billie Holiday”.
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Lamentavelmente, Amy foi tratada como a personalidade que vendia revistas e tabloides, que fazia circular muito dinheiro na baixa indústria de fofocas, que se nutria da fragilidade dos adictos. Ela foi mais uma vítima do dinheiro fácil e podre que circula sem a menor ética e apreço à vida humana. Alimentou a indústria capitalista da mediocridade, da inveja e da fantasia e foi devorada pela ganância dos podres poderes.
Mas Amy não sucumbiu à indústria da música, apesar de ser engolida pela imprensa. Se tem um lugar onde a cantora preservou (e se preservou!) foi aquele em que residia seu mais íntimo desejo; era onde vivia sua pulsão de vida. Lá, existia uma Amy com acordes e decibéis indeléveis e intangíveis. Com uma autenticidade e força indescritíveis; com um estilo marcante, sem vulgaridades e excentricidades midiáticas. Amy era autêntica nos seus desejos. Era verdadeira, por isso, livre!
Entretanto, como sobreviver em um meio ditado pelas regras draconianas de vendas e paradas de sucesso sem ter, por trás, uma estrutura psíquica forte? Amy sucumbiu à fragilidade de sua estrutura. Como lindamente declarado por um de seus ídolos, Tony Bennet, “se ela estivesse viva, lhe diria: ‘Vai mais devagar, você é muito importante. A vida te ensinará realmente a viver, se você conseguir viver o suficiente’”. E o (in)suficiente de Amy nos deixou uma falta.
O filósofo Adorno disse que “o progresso acontece lá onde ele termina”. A capacidade de movimentação de vultosas cifras na indústria da música promove o que, na teoria econômica, denomina-se “externalidade positiva”. Traduzindo, a externalidade positiva é algum efeito não esperado, decorrente de um evento. Por exemplo, a venda de shows da cantora Amy Winehouse gerava, além de bilheterias, vendas de camisetas, sapatilhas criadas pela cantora e outros itens.
No entanto, assim como gerava externalidades positivas, no caso específico de Amy, também gerou externalidades negativas que afetaram diretamente sua vida, ou melhor, sua sobrevida. Amy tinha histórico de bulimia desde a adolescência, algo ignorado pelos pais, assim como sua dependência química por drogas pesadas, como heroína, crack e cocaína. A família não lidou com sua fragilidade, só com seu potencial e seu sucesso.
Ainda muito jovem, com pouco mais de 20 anos de idade, Amy já tinha sua casa própria e tomou, com mais liberdade, as rédeas de sua própria vida, entregando-se cada vez mais à música, ao álcool e à bulimia. A tempestade perfeita foi se constituindo com sua frágil condição psíquica, seu sucesso musical e o encontro com um “amor adicto” – seu futuro marido, Blake Fielder-Civil.
Amy encaixa-se perfeitamente na narrativa da terapeuta Robin Norwood em seu livro “Mulheres que amam demais”. Trata-se de histórias de mulheres codependentes afetivamente de seus parceiros, que, por sua vez, colocam-nas em situações de maior vulnerabilidade e sofrimento. Assim viveu Amy em seu relacionamento com Blake Fielder-Civil, que a introduziu ao mundo das drogas pesadas, para além do alcoolismo que já fazia morada em seu corpo.
A arte de viver, em meio aos desafios da origem, às complexidades dos ambientes e às escolhas decorrentes desses contextos, não é para aqueles que carregam à flor da pele, ao som da voz e à expressão do corpo a inefabilidade da vida. Amy esteve comigo nesta última semana. Sua força e sua fragilidade caminharam lado a lado com meus medos e meus tenros desejos. Amy me reacendeu a luz da liberdade, mesmo em uma sociedade covardemente adoecida.
Não foram poucas as vezes que Amy disse não se importar com grandes públicos, mas sim com sua música. Ela estava interessada em seu desejo, em sua pulsão de vida, mas a sociedade estava interessada em sua destruição, gozava com sua pulsão de morte. Em uma sociedade cada dia mais adoecida, a morte da pulsão de vida toca, com mais força, nosso buraco interno. Seja eterna, Amy! Você representa muitas mulheres livres e senhoras de seus desejos.