No sábado último (8), morreu Maria da Conceição Tavares, a economista mais icônica do Brasil. Conhecida por sua forma entusiasta, até mesmo teatral, de debater e expor suas ideias, Conceição defendia que a economia era uma ciência social, um instrumento para melhorar social e politicamente uma nação, para integrá-la. Por toda sua defesa do bem-estar e da inclusão, Conceição foi poupada do novo cenário com fortes contornos à extrema direta do Parlamento Europeu.
O resultado da eleição para se compor os 720 assentos do Parlamento Europeu, pelos próximos cinco anos, foi definido no último domingo (9). Os quatro maiores países – Alemanha, França, Itália e Espanha – responderam por 43,6% dos assentos que, somados, trouxeram maior força à extrema direita, algo até então não vivenciado com tamanha proporção naquele continente.
Na Alemanha, o partido de extrema direita “Alternative für Deutschland” (AfD) ficou em segundo lugar – sua maior pontuação já alcançada nas eleições europeias –, com 15,9% dos votos, equivalente a 15 assentos. É bom lembrar que o líder do AfD faz apologia explícita ao antissemitismo. Seu desempenho “ainda” ficou abaixo da coalizão Partido Popular Europeu, que reúne os partidos União Democrata-Cristã e União Social Cristã.
Na França, a coalizão “Identidade e Democracia” foi liderada pelo partido da líder da extrema direita Marine Le Pen, que, em 2004, havia obtido apenas 1,7 milhão de votos válidos – equivalente a 9,8% do total; em 2024, exatos vinte anos depois, obteve 7,7 milhões de votos, representando 31,4% dos assentos franceses no Parlamento Europeu, caracterizando-se, assim, a maior guinada francesa à direita na história política contemporânea desse país.
Na Itália, dos 76 assentos, 24 – equivalente a 28,8% do total – ficaram com o partido de extrema direita Fratelli d’Italia, da atual primeira-ministra Giorgia Meloni. Esses três países, por serem os maiores representantes do Parlamento Europeu, dada a regra de proporcionalidade populacional, sinalizaram mudança mais forte da política europeia para os próximos cinco anos, em contexto mundial de guerras, desigualdades sociais, refúgios e pressões climáticas.
O novo Parlamento Europeu não pode ser visto dissociado de importantes movimentos, no contexto geopolítico mundial. Os Estados Unidos vivem grandes chances de retorno de Donald Trump à Casa Branca; a Rússia de Putin tem se posicionado de forma mais hostil ao Ocidente; as pressões ambientais se intensificam sem acordos efetivamente praticados; e os movimentos migratórios seguem ocorrendo em meio à ausência de garantia de direitos humanitários.
Com cerca de 20% do Parlamento, destacam-se, dentre as pautas da extrema direita, o cerceamento à imigração e ao refúgio, o afrouxamento das políticas climáticas e as tensões geopolíticas, como a guerra da Ucrânia e os massacres do povo palestino na faixa de Gaza. Nesse último aspecto, há o risco atroz do crescimento do antissemitismo liderado, na Alemanha, pelo partido AfD, cujo líder vem arrebatando seguidores jovens e ricos.
Pergunto-me o que Maria da Conceição Tavares estaria a bravejar após os resultados das urnas europeias. A economista tinha por hábito a capacidade de tomar a cena com falas rompantes e passionais. Há quase três décadas, em 1995, no programa Roda Viva, da TV Cultura, Conceição afirmou que “uma economia que não se preocupa com a justiça social é uma economia que condena os povos a isso que está acontecendo no mundo inteiro”.
Desde 1995 para cá, o mundo passou a experimentar intensos fluxos entre os países; os anos de inflação e hiperinflação foram superados na maioria das economias em desenvolvimento; as pessoas passaram a transitar com maior facilidade e liberdade no Ocidente e em grande parte do Oriente; as ditaduras foram largamente derrubadas e as democracias fortalecidas ou instauradas.
Entretanto, a economia é cíclica e tais ciclos são acompanhados de novos arranjos sociopolíticos. Não que vivamos os mesmos desafios de trinta anos atrás, mas os atuais movimentos colocam a humanidade à beira de retrocessos extremamente perigosos, além de aumentar o risco de se impedir avanços urgentes.
Consigo imaginar os gestos da icônica Conceição comentando os resultados do Parlamento Europeu, esbravejando sobre o possível cenário de crescimento dos nacionalismos concomitante à exclusão social e ao aumento das disparidades entre países. A economista muito provavelmente estaria alardeando sobre os riscos sociais não só nos países mais pobres, como também nos desenvolvidos, como o fez há quase trinta anos.
Por fim, consigo vislumbrar Conceição detonando o resultado das escolhas dos europeus que, buscando voltar aos tempos gloriosos em que cresceram e prosperaram às expensas dos continentes dominados, acreditam que o mundo ainda se restringe ao velho continente (e à América). Que a alma irrequieta da economista descanse em paz enquanto nós, pobres mortais, seguimos nessa luta inglória de nos desenvolvermos social, econômica, política e humanamente.
Por mais Conceições e menos Le Pens!