Criança segura as pernas, em posição defensiva e de tristeza; imagem meramente ilustrativa -  (crédito: Pixabay)

Criança segura as pernas, em posição defensiva e de tristeza; imagem meramente ilustrativa

crédito: Pixabay

Em 26 de junho de 1945, era assinado o tratado que instituiu a Organização das Nações Unidas (ONU) e cujos propósitos fundamentais, descritos no Preâmbulo da Carta da ONU, eram “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direito dos homens e das mulheres”. Passados exatos 79 anos, o mundo caminhou trôpego e langorosamente em sentido à igualdade de direitos.


A Carta da ONU teve a colaboração de 850 delegados, sendo somente 4 mulheres. Bertha Lutz, brasileira, bióloga, educadora, diplomata e ativista feminista, foi uma das integrantes que, juntamente com Minerva Bernardino, da República Dominicana, defendeu e conseguiu a inserção da igualdade de gênero na Carta da ONU. Bertha foi a segunda mulher a ingressar no setor público e a se tornar uma parlamentar no Brasil.


Em 2022, 17,59% do parlamento brasileiro era composto por mulheres, enquanto, em 2014, esse percentual era de 10,37%. Entretanto, o avanço da participação das mulheres não significou, lamentavelmente, o avanço da defesa dos direitos da mulher. Os dois gritantes exemplos foram: o projeto de lei de paridade salarial entre mulheres e homens (PL 1085/2023) e o projeto de lei que equipara aborto a homicídio (PL 1904/2024), posto em pauta e votado em segundos.


No primeiro projeto, dez deputadas foram contra a paridade salarial de gênero e, no segundo, doze votaram a favor da equiparação do aborto ao homicídio com pena maior para a mulher e a criança do que para o estuprador.

 

 

O mais estarrecedor, para além da perversidade e requintes de crueldade do PL 1904/2024, foi a avalanche de estatísticas divulgadas por diferentes especialistas que demonstram um problema muito mais grave: apesar da proteção e aparato jurídico, é quase impossível uma criança ou mulher vítima de estupro conseguir fazer um aborto legal no País. E essa deveria ser uma das principais pautas a ser tratada e de política a ser efetivada, pois a garantia jurídica consta somente no papel.


Com base nos dados de um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), estima-se que cerca de 505 mil crianças com até 13 anos sejam estupradas anualmente. Meio milhão! Além disso, do total de pessoas estupradas, a predominância é sobre as de cor negra (56,8%) e do sexo feminino (88,7%), sendo que 64,4% dos estupradores são familiares e outros 21,6%, conhecidos da família; por fim, 71,6% dos casos ocorrem dentro da própria casa da vítima.


Como uma criança seria capaz de falar sobre o estupro se, em sua maioria, a violência se dá no âmbito doméstico e no meio de pessoas mais pobres?


A escritora negra, feminista e ativista racial estadunidense Gloria Watkins, conhecida pelo pseudônimo bell hocks, afirmava que à maioria das crianças abusadas física e/ou psicologicamente foi ensinado, pelos adultos responsáveis, que o amor pode coexistir com o abuso e que, em casos extremos, o abuso é uma expressão de amor. A escritora brasileira Hilda Hilst dialoga diretamente com a ideia de bell hocks ao narrar esse tipo de perversidade desenhando as percepções adultas do amor.


Em “O caderno rosa de Lori Lamby”, de Hilda Hilst, o abuso de uma criança de 8 anos por  um adulto, com a permissão dos pais, levou à dependência psíquica dessa criança aos prazeres ali gerados, de forma doentiamente perversa, pelo “tio” – amigo íntimo da família. A personagem Lori Lamby torna-se vítima desse pensamento defeituoso que moldou suas percepções do amor (e/ou do sexo). Sugiro a distribuição gratuita do livro de Hilda Hilst a todos os parlamentares que estão apoiando o PL 1409/2024.


Na mesma semana em que foi votada a PL 1904/2024, três estudos desanimadores foram divulgados: (i) a 18a edição do Índice Global de Diferença de Gênero, do World Economic Forum; (ii) a investigação de trabalho infantil na colheita do jasmim para produção de perfumes de grandes marcas, da BBC; e (iii) o estudo sobre as disparidades de design e pesquisas clínicas realizadas com mulheres e homens, do Fundo das Nações Unidas para População (UNFPA).


O Índice Global de Diferença de Gênero é um estudo realizado desde 2006 e conta, atualmente, com a participação de 146 países. Os resultados gerais indicam que educação e saúde alcançaram índices de paridade bem mais elevados, enquanto a representação nas atividades econômicas e nos parlamentos são enormes desafios.


A manter o ritmo atual, estima-se que a paridade no mercado de trabalho, traduzida como igualdade de participação entre gêneros, só seja alcançada daqui a 152 anos, e a representatividade parlamentar, em 169 anos.


Desejo que, ao longo dos 152 anos para se alcançar a paridade de gênero no mercado de trabalho, também sejam dizimadas as práticas escravagistas envolvendo crianças e mulheres, como, por exemplo, a de colheita de jasmim para marcas famosas como Lancôme e Aerin Beauty (Estée Lauder), conforme apontou a investigação da BBC.


A investigação, com registros de filmagens das mulheres acordando às 3 horas da madrugada e levando seus filhos para ajudarem na colheita do jasmim, é entristecedora. Ausência escolar, doença nos olhos e miséria acompanham a vida dessas pobres crianças no podre mundo dos grandes negócios.
Por fim, o estudo da UNFPA (“Equity 2030 Alliance”) indica que a exclusão das mulheres dos ensaios clínicos e das pesquisas de desenho de produtos impactam severamente suas vidas.


Dois exemplos do estudo são suficientes para causar perplexidade: (i) como a maioria dos ensaios clínicos são feitos em homens, os diagnósticos das mulheres são definidos tardiamente em relação ao dos homens, cerca de quatro anos ou mais, em mais de 700 doenças; e (ii) apenas 1% dos fundos globais de pesquisa e inovação em saúde destinam recursos para estudos oncológicos voltados para a mulher. Não há dúvidas de que as mulheres e as crianças são as últimas na fila do pão.


Torna-se, dicotomicamente, difícil acreditar que a liberdade, a igualdade de gênero, os princípios democráticos e, sobretudo, os princípios humanitários tenham espaço no cenário nacional (e mundial), muito embora a conscientização dos direitos e dos abusos venham mobilizando cada vez mais mulheres e vulneráveis na direção da denúncia e da reivindicação de direitos. A luta é secular e promete continuar sendo.