A agenda climática, cada dia com mais evidência, dialoga com uma série de outras temáticas de políticas estruturantes. Exemplos de interconexão são os impactos de desastres e catástrofes sobre a condição humana dos atingidos, as necessidades de deslocamentos e buscas por novas formas de sobrevivência financeira e sustento e o papel do estado na garantia da soberania e da defesa de seus povos e seus territórios. A agenda climática é uma agenda humanitária.

 

As mudanças climáticas põem em xeque a capacidade institucional dos estados e podem provocar instabilidades políticas e sociais de dimensões ainda pouco claras. Os efeitos decorrentes dessas mudanças colocam em risco a disponibilidade dos recursos naturais (a água, os alimentos, a energia, a comunicação etc.) e as formas tradicionais de sobrevivência. Portanto, participar direta ou indiretamente desse debate é clamar pela vida e por responsabilidade!

 

 

Se nos concentrarmos nos últimos anos do final do século XX e nas primeiras décadas do século XXI, podemos notar que o papel soberano dos Estados tem migrado para atuações que transcendem sua personalidade jurídica, bem como sua atuação nas fronteiras nacionais e em temas militares centrais. A ampliação da centralidade do debate passa pelas relações socioeconômicas, pelo modo de produção e pela contabilização desse modo de consumir que afeta o planeta.

 

As agendas climáticas revelam como esse debate vem se transformando nas últimas décadas: a Rio92, na cidade do Rio de Janeiro, produziu a Declaração Rio, que inclui o Princípio das Responsabilidades Comuns, mas Diferenciadas – hoje já alterada para incluir na conta, além dos Estados Unidos e da Europa, países como China, Índia e Brasil; a Convenção do Clima, em vigor desde 1998; e o Acordo de Paris, que limita as emissões de carbono em 1,5ºC.

 

 

O problema é que “não parece haver verdadeira disposição prática em se pagar a conta”. O jogo de empurra-empurra entre os Estados-membros só tem aumentado o custo futuro da ausência de prevenções e políticas pactuadas internacionalmente, garantido o princípio soberano de cada Estado, a fim de que a conta seja factível para as Nações-membros e que as políticas sejam efetivamente implementadas.

 

O Observatório do Clima aponta que, “desde 2006, a ciência vem mostrando que o custo de não agir no clima é muito maior” e traz o exemplo recente dos efeitos devastadores das chuvas sobre o estado do Rio Grande do Sul, que, em parte por negligência e irresponsabilidade com a preservação de suas formas de contenção de desastres, já provocou desembolsos federais da ordem de R$ 62 bilhões.

 



 

Ironicamente, às vésperas da Semana do Clima (Climate Week, no original) e da Abertura da Conferência da ONU, em Nova York, o Brasil vive intensos focos de incêndio. O país está em chamas! E chamas predominantemente em vegetação natural e áreas já anteriormente desmatadas, o que traz indícios da prevalência de incêndios criminosos, dentro de uma cultura cuja criminalidade faz parte da extração das riquezas em sua forma mais arcaica e violenta.

 

A Abertura Anual da ONU acontece em meio às fuligens e ao ar seco das queimadas nos maiores biomas nacionais. Como manter o protagonismo e o poder de barganha em meio às chamas e à dificuldade de defesa nacional interna? Como capitanear o debate com os Estados-membros se, internamente, o fogo deflagra a falta de seriedade empresarial, a fragilidade das políticas do estado e a cultura da destruição?

 

Segundo dados extraídos do Programa Queimadas, da plataforma do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o ano de 2024 é o quinto na classificação das maiores incidências de focos de queimadas no país, conforme dados desde 1998. Os piores anos foram 2007 (215.926 focos), 2004 (202.438), 2010 (193.893) e 2005 (192.637). Em quinto lugar vem 2024, com 184.363 registros de focos de incêndio, no mesmo período de comparação.

 

 

Embora surpreenda o fato de 2024 ser o quinto maior ano de incidência de focos de queimadas, a questão fundamental é a natureza e a gravidade em meio ao aumento das pressões climáticas e à conscientização da sociedade civil da urgência climática. Acrescido a isso, os tipos predominantes de queimadas, ou classes de desmatamento, como definido pelo INPE, indicam a urgência do tema.

 

O INPE classifica os desmatamentos em sete categorias: vegetação primária, desmatamento consolidado, vegetação recente, desmatamento recente, vegetação primária não florestada, vegetação secundária e outros. O que chama atenção é a maior incidência na vegetação primária, seguida pelo desmatamento consolidado, nos maiores biomas do país – Amazônia, Cerrado e Pantanal.

 

Dentre os biomas nacionais (Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal), os mais afetados são Amazônia, com 49,9% dos focos de queimadas, Cerrado, com 32,6%, Mata Atlântica, com 8,9%, e Pantanal, com 5,8% do total dos focos. Somente os municípios de São Félix do Xingu, Altamira e Novo Progresso, no Pará, respondem por 15.607 focos de incêndio, o que corresponde a 49% de todos os focos naquele estado e a 8,5% do total do País.

 

 

Ainda segundo o INPE, de agosto de 2019 a agosto de 2024, as classes de desmatamento com maior número de focos se deram, primeiramente, na vegetação primária, seguida pelas áreas de desmatamento consolidado.

 

Há que se distinguir as taxas acumuladas de desmatamento dos incrementos de desmatamento. Especificamente na Amazônia Legal, o estado do Pará responde pelas maiores taxas acumuladas de desmatamento, seguido por Mato Grosso e Rondônia. Os três estados, agregadamente, respondem por 80% do desmatamento da Amazônia Legal. E será no estado do Pará que o Brasil sediará a primeira Convenção das Nações Unidas sobre clima, a COP-30, em 2025.

 

Muitas são as incongruências, as evidências da incapacidade de uma solução mais imediata e de um diálogo minimamente justo e factível entre governos, setores privados, povos originários e representantes da sociedade civil. O fogo ateado ou gerado pelas secas marca a destruição da capacidade de construção de um projeto de sustentabilidade, de equidade e de vida digna para todos.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia

 

Ao escrever essas linhas, lembrei-me de uma paisagem recorrente em minha infância, quando fazíamos pequenos passeios de carro, em família, nos finais de semana, ou feriados, pelas Minas Gerais. Eu sempre me espantava com as queimadas e ficava me perguntando como era possível esse tipo de prática. As crianças nascem integradas à natureza e são capazes de sentir a dor de sua destruição. Os adultos vivem anestesiados e seguem alheios ao fogo que arde.

compartilhe