Em 2022, ingressei no universo das pessoas diagnosticadas com doenças crônicas. Essa nunca foi uma questão de tabu para mim, mas é para a maioria das pessoas com as quais convivo. “O Quarto ao lado” mexeu com meu desejo e meu maior incômodo desde que fui diagnosticada e passei pela (primeira) quimioterapia: poder falar livremente sobre a morte, refletir sobre o que foi vivido até o momento e entender que a finitude está posta, embora seja muito difícil se implicar com ela.

 

 

Não tenho experiência que me permita falar com mais propriedade sobre outras culturas, mas, certamente, no Brasil prevalece a “polidez da verdade”. Nada é permitido dizer se for capaz de provocar algum mal-estar, mesmo se tratando da dor do sujeito que fala. Corremos o risco de sermos mal interpretados se tivermos a espontaneidade de dizermos o que pensamos ou sentimos. A cultura da negação e da preservação do incômodo está permeada até mesmo nas relações mais íntimas.

 

“O Quarto ao lado”, vencedor do Leão de Ouro de Veneza deste ano, é filme para se assistir mais de uma vez. Além de ter como protagonistas Tilda Swinton e Julianne Moore, carrega a assinatura de Pedro Almodóvar em todos os detalhes, exceto por ser todo falado em inglês e se passar, na sua maior parte, em Nova Iorque. Não vou trazer spoiler sobre o filme, exceto falar do que é vivido entre duas amigas após a decisão de uma delas (Martha) ao optar pelo suicídio assistido.

 

Na última quinta-feira (24/10), Antônio Cícero, poeta e compositor brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras, cometeu eutanásia, que difere do suicídio assistido somente por quem conduz o paciente à própria morte. A notícia não só traz consigo o lamento pela morte de figura marcante na cultura nacional, como também desconforto, para muitos, sobre a escolha de tirar a própria vida.

 

 

Não sou capaz de julgar ou sequer de entrar nessa discussão, pois meu lado cristão luta pela preservação da vida. No entanto, entendo e me consterno com casos que chegam até mim de pessoas que escolhem tirar sua própria vida em momento de frágil condição psíquica e emocional. O suicídio entre jovens, por exemplo, é fenômeno desolador que, lamentavelmente, tem se tornado crescente nas diversas sociedades e exige olhar mais atento. Falta escuta ao sofrimento dos jovens.

 

A vida é um construir-se em morte contínua, uma luta diuturna para sobreviver às intempéries e sustentar os regozijos. E a vida prescinde de sentido, de propósito. Como disse o psicanalista Contardo Caligaris, “o sentido da vida é a própria vida”. E quem mais pode dar sentido e propósito à própria vida do que quem a vive?

 

 

Voltando ao ponto central do filme, que dialoga com o ponto central da minha história recente de vida, deparar-se com uma doença que carrega traços de cronicidade levou-me a querer conhecer melhor o universo das pessoas que vivem o desafio de situações em que a saúde dialoga, com mais proximidade e frequência, com a perspectiva da morte.

 

Atualmente, entrevisto, para fins de produzir um livro, pessoas diagnosticadas com doenças linfoproliferativas crônicas - homens e mulheres, jovens e adultos, com distintas condições socioeconômicas - com semelhantes desafios interiores: como lidar com a finitude da vida? Nessa jornada, tenho encontrado pessoas com histórias muito singulares, mas com eixos comuns: grande vontade de viver conjugada ao pouco espaço para lidar com as limitações emocionais desse viver.

 

O que, para mim, por meio da doença, tornou-se caminho de expansão do coração, da conexão espiritual e da vida interior, certamente pode ter sido também o caminho de muitos que conheci e com quem tenho tido a possibilidade de conviver. No entanto, essa vida interior e esse desafio silencioso que cada um carrega, com suas limitações trazidas pela saúde, ainda são grande tabu nas relações interpessoais.

 



 

“O Quarto ao lado” é capaz de trazer o diálogo franco e cada vez mais cheio de amor e compaixão entre duas amigas que se reaproximam para viver a proximidade e a opção pela morte de uma delas. É a troca dos olhares, o toque, o estar juntas, o entender-se que prevalece em uma intimidade de aceitação mútua, de confiança e de muita compaixão – muito além da empatia!

 

Em “O Quarto ao lado”, a amiga que aceita acompanhar o suicídio assistido não foi julgada pelo amor, mas pela justiça dos homens. Na vida real, as pessoas que carregam desafios de saúde e de outras naturezas nem sempre encontram espaço para que o amor, cheio de críticas e preconceitos, deixe de julgá-las e passe a acolhê-las. A dor precisa de escuta. E, no egoísmo de nossas vidas, fechamo-nos à dor alheia com medo de termos que nos deparar com nossas próprias dores.

 

A estúpida limitação que nos impomos de não vivermos o que interiormente nos chama, por medo de não sermos capazes de acreditar em uma experiência que transcende o aqui e o agora, também nos limita a falar com mais serenidade e sinceridade sobre nossas dores, nossas lutas interiores, nossas batalhas travadas com nós mesmos.

 

Na impermanência da vida, a todo instante nos deparamos com oportunidades de enxergarmos a vida com outros olhos, de experimentarmos o seu gosto com outros paladares, de bebermos da sua fonte de amor provando outros sabores. A vida é contraditoriamente infinita nas suas possibilidades de experiências e finita na sua delimitação para vivê-las. E essas experiências são únicas para cada ser. Não são propósitos de fora para dentro; a vida não pode ser imputada a terceiros.

 

Na falsa noção de livre-arbítrio, temos optado pelo silêncio ante o sofrimento de tantos povos, guerras, disparidades sociais, desrespeito à natureza, violências com toda sorte de requintes e falta de limites. Não podemos nos isentar diante dos assassinatos de crianças e mulheres nos ataques diários de Israel à faixa de Gaza; do sequestro e da separação das crianças ucranianas de seus pais; dos horrores criados na gestão Trump àqueles que tentaram ingressar ilegalmente no país etc.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia

 

Poderia fazer uma lista com extensas estatísticas sobre as atrocidades vividas atualmente, que não são únicas nem serão as últimas, mas serão piores se, por medo de desagradarmos ou de tocarmos em questões que geram melindres ou incômodos, abandonarmos qualquer forma de compaixão e compreensão que, com o amor, somos capazes de suportar e superar tudo quando nos posicionamos.

 

Nos toquemos por São João da Cruz, quando diz que “no ocaso dessa vida, seremos julgados pelo amor”, e sejamos capazes de nos compadecer da dor alheia, assim como das nossas, nos posicionarmos e acolhermos aqueles que precisam de nós.

compartilhe