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Eleonora Cruz Santos
Eleonora Cruz Santos
Economista, com mestrado em Demografia, doutorado em Administração e pós-doutorado em Economia, trabalha como consultora para organismos internacionais, atuando nas áreas sociais, de mercado de trabalho, migração e desenvolvimento humano; também leciona p
ELEONORA CRUZ SANTOS

O mundo real começa a banir a tecnologia criadora de 'brain rot'

A vertente da IA voltada às redes sociais tem se mostrado perigosa ao bem-estar das sociedades e ao desenvolvimento humano digno ético e moralmente

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Inúmeras são as preocupações concernentes ao uso excessivo da tecnologia ou dos recursos e dispositivos a ela atrelados. As discussões, para além da ética que perpassa todos os demais campos da construção do saber, atingem diretamente as áreas da educação, da saúde (mental), da política e da economia. Em todos os casos, as falácias da tecnologia e seu mal-uso têm sido objeto de vários estudos e propostas de (re)desenho de políticas públicas.

 

É importante distinguir entre a discussão da Inteligência Artificial (IA) nos processos produtivos e científicos e no uso de ferramentas de IA para redes sociais. São vertentes distintas. Originalmente, a IA surge para realizar tarefas nas quais a capacidade humana é limitada. Nos idos de 1950, um dos pioneiros da IA na área da robótica e das redes neurais, o cientista Marvin Minsky, previa que as máquinas ultrapassariam os seres humanos. Isso não ocorreu e muito ainda se especula sobre o alcance da IA.

 

Um dos laureados ao Nobel de Economia de 2024, Daron Acemoglu, publicou artigo recente no Project Syndicate afirmando, em tradução livre, que “não devemos esperar que mais de 5% do que os humanos fazem seja substituído pela IA na próxima década. Vai demorar significativamente mais para os modelos de IA adquirirem o julgamento, as habilidades de raciocínio multidimensional e as habilidades sociais necessárias para a maioria dos trabalhos”.

 

 

A bem da verdade é que o avanço da tecnologia em diversas áreas da economia ainda traz ganhos de produtividade pequenos comparativamente aos custos sociais que geram sobre o mercado de trabalho. Economias de escala no setor produtivo nem sempre são acompanhadas de ganhos sociais. A discussão é complexa e envolve desenhos de políticas que sejam capazes de abarcar o contingente de mão de obra menos qualificado que perde seu emprego e não tem formação para se recolocar.

 

A tendência e a prática perversa acerca da discussão e dos rumos da aplicação da IA na economia residem no entendimento e na busca da substituição dos trabalhadores por processos de automação. Entretanto, a discussão e o desenvolvimento da IA deveriam estar voltados para a criação de melhores oportunidades a fim de que os trabalhadores fossem capazes de gerar maiores ganhos de produtividade ao serem subsidiados pelos recursos da IA. Na prática, em algumas áreas, isso já ocorre.

 

Enquanto a discussão do desenvolvimento e uso da IA para os diversos setores da economia - indústria, agropecuária e setor serviços, em especial as áreas de tecnologia, educação, saúde e transportes/logística – esteja voltada para ganhos de produtividade e superação das limitações humanas para seu desempenho, no caso das redes sociais, a preocupação concerne, principalmente, no mal-uso e no prejuízo à formação das crianças e dos jovens e na manipulação para fins políticos.

 

 

Na neurociência, alguns estudos clínicos já apontam para os efeitos deletérios da falta da escrita no desenvolvimento cognitivo das crianças; na área da saúde, o adoecimento psíquico dos jovens e das crianças ocupam, cada vez mais, espaço nas práticas clínicas. Já em 2015, a neurocientista cognitiva Karin James divulgou estudo clínico com dois grupos de crianças em fase de alfabetização: as que utilizavam a mão para realizarem a escrita das letras e as que utilizavam dispositivo eletrônico.

 

O estudo foi realizado com exames de ressonância magnética para captar as áreas do cérebro ativadas no momento em que os dois grupos de crianças tentavam reconhecer e/ou entender as letras. O resultado indicou que, no grupo das crianças que tentavam escrever as letras à mão, a ativação do cérebro era similar a das pessoas alfabetizadas; no segundo grupo, não ocorria essa ativação mais ampliada. Além das habilidades cognitivas, há o estimulo fundamental das sintonias finas.

 

 

A conexão com o próprio corpo constitui-se exercício preparatório para a conexão com o outro, para o contato físico presencial e a socialização por meio da troca. E a IA desenvolvida pelas empresas líderes dos aplicativos que “forjam” conexões e formas de aproximação por meio de redes virtuais, lançam mão da construção de algoritmos cujo objetivo primeiro é o lucro. Burlam o princípio ético que deu origem à IA e criam adoecimento psíquico e cognitivo, sobretudo entre jovens.

 

Do ponto de vista da formação como um todo, o ato de escrever com as mãos, pegar em um lápis, tocar de forma diferente com cada dedo das mãos também ativa e estimula habilidades voltadas à sintonia fina, ao ato simples, mas muitas vezes desafiador, de ter contato com materiais e construir outras capacidades de concentração e conexão com o próprio corpo. Nesse sentido, as políticas públicas de educação têm revisto, no mundo, sua flexibilização quanto ao uso da tecnologia.

 

Em 2023, o relatório anual da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), dedicado à avaliação do uso das tecnologias no aprendizado, destacou indícios de “déficits cognitivos” na capacidade de aprendizado, decorrente do mal uso da tecnologia e da dependência dos celulares por crianças e jovens dentro dos estabelecimentos de ensino. A dispersão, prima-irmã da incapacidade de concentração, tem causado prejuízos visíveis na educação.

 

Preocupados com os efeitos deletérios sobre a capacidade de socialização, de concentração e de aprendizado, várias nações têm criado regras mais duras quanto ao uso dos dispositivos eletrônicos nas escolas. Em 2018, a França tornou-se nação precursora do banimento dos celulares nas escolas de ensino básico. De lá para cá, México, Portugal, Espanha, Finlândia, Holanda, Suíça, Letônia, Estados Unidos e, recentemente, Austrália adotaram regras de banimento ou restrições aos celulares.

 

 

A cereja do bolo do desastre promovido pela manipulação das grandes empresas de tecnologia voltadas para as redes sociais foi a eleição da expressão “brain rot”, pela Universidade de Oxford, como a mais utilizada no ano de 2024. “Brain rot”, em tradução livre, significa cérebro apodrecido e refere-se aos reflexos da assimilação excessiva de conteúdos de baixa qualidade produzidos pelas redes sociais.

 

Segundo a presidente da Oxford Languages Casper Grathwohl, “a podridão do cérebro fala de um dos perigos percebidos da vida virtual e de como estamos usando nosso tempo livre. Parece um próximo capítulo legítimo na conversa cultural sobre humanidade e tecnologia. Não é de se surpreender que tantos eleitores tenham adotado o termo, endossando-o como nossa escolha este ano”.

 

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Entre cérebros apodrecidos e empresas de tecnologia com cérebros contratados para criarem algoritmos capazes de manipular mentes de crianças e jovens, a vertente da IA voltada às redes sociais tem se mostrado perigosa ao bem-estar das sociedades e ao desenvolvimento humano digno ético e moralmente. Que os governos se imbuam de políticas que promovam (i) os benefícios da IA para o aprendizado humano e (ii) o fim da perversidade do “lucro do engajamento”.

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