Há alguns anos, o programa Saia Justa, do canal GNT, me convidou juntamente com outras belo-horizontinas para uma reunião de pauta para uma edição que seria gravada em Beagá. Eles queriam entender a dinâmica da cidade, a cultura, curiosidades em torno desse povo acolhedor etc e tal. Através das falas das outras convidadas, foi surgindo uma cidade que eu até então desconhecia ou não havia me atentado para tal.

 

Em um determinado momento, a produção queria entender a relação do povo mineiro com a comida. Uma das convidadas disse que a cozinha do mineiro era a sala de estar da casa. Onde todo mundo senta e passa horas conversando. Ela, uma mulher branca, que na época residia em um bairro dito nobre da Zona Sul da cidade, disse que a avó dela adorava fazer a cozinha de sala, mas nunca cozinhou. Ao ouvir ela falar, me lembrei da personagem Dona Benta, do sítio do Pica Pau Amarelo. Ficção, não tão ficção assim, elaborada pelo euginista Monteiro Lobato.

 

Se não era a vó dela quem cozinhava, eu não preciso nem dizer quem ficava responsável pela prole doméstica naquela “sala de estar”. Nós que descendemos do arquétipo da Tia Nastácia conhecemos muito bem essa história forjada de jornadas longas, exaustivas e insalubres de trabalho que resultam em pernas inchadas no final do dia e ao longo dos anos anos corrói a saúde corpórea e mental dessas mulheres. Ser quase da família para receber baixos salários, quebrar o galho em acúmulos de funções sendo simultaneamente babá, cuidadora de idosos, passadeira, lavadeira, cozinheira, cuidadora de pet dentre tantas outras tarefas, mas nunca para sentar à mesa em uma refeição.

 

Eu ouvi tanto essa história a partir da perspectiva da minha vó, uma mulher preta que lavava, passava e cozinhava para fora que chegou a vez de eu ouvir a perspectiva da neta da branquitude que usufrui de tais serviços. Eu fui em outro mundo e voltei ao escutá-la. Tanto é que no exato momento não consegui contribuir com a minha percepção sobre como vejo nossa relação com a comida.

 



Até que perguntaram de onde vem essa característica do mineiro contador de caso. O silêncio reinou durante alguns minutos, e foi aí que eu disse o óbvio: Minas é negra formada por descendentes de diversas regiões da África. Um povo de tradição oral, com gritos e que muitos de nossos ascendentes são Bantus, um povo etnolinguístico. Essa nossa cultura das religiões de matriz africanas de provérbios e itans se faz presente no cotidiano contemporâneo, mas muitas pessoas não se atentam.

 

Assim como não se atentam para detalhes da famosa, deliciosa e reconhecida comida mineira que as Donas Bentas levam o mérito e dão nomes aos restaurantes. Mas sabemos que na verdade são as Tias Nastácias que colocam a pitada certa de tempero e pimenta. Picam a couve bem fininha, preparam o angu e misturam o frango com o quiabo, que é africano.

 

A comida mineira foi reconhecida recentemente pelo site The Taste Atlas como a melhor culinária do Brasil. Em seguida, veio a baiana. Duas culinárias de tradição e tempero de mulheres pretas. O que para nós, filhas, netas e bisnetas dessas mulheres, não é novidade alguma, até porque desde criança sabemos o quanto é saborosa a comida preparada pelas nossas.

 

Quantas chefs de cozinha negras que assinam o cardápio de restaurantes renomados você conhece? Qual é a cor de quem comanda a cozinha na TV pela manhã? Qual é a cor das ajudantes que ficam em silêncio no fundo passando os ingredientes e que surgem com o prato pronto no final? Quem protagoniza os programas culinários da TV brasileira? Pois, então, essa reflexão pode escancarar a profundidade do racismo antinegritude e do sexismo das políticas de reconhecimento da gastronomia.

 

Conversando com Zora Santos, pesquisadora da comida afro-mineira que recebeu a Comenda da Ordem do Legislativo mineiro de 2023 pelo seu trabalho, ela me confirmou algo que não dá para esquecer: "As pretas cozinheiras são as verdadeiras fazedoras e criadoras do que se convencionou chamar de comida mineira. Mulheres pretas invisibilizadas e desrespeitadas.


As comidas negras são as melhores do Brasil, mesmo quando tentam apagar as profissionais negras da história e colocam um chef de cozinha branco no comando da cozinhas. São eles que inúmeras vezes recebem um prêmio de uma culinária que foi apropriada. Esse texto pode parecer rancoroso aos olhos de alguns que negam o óbvio e acreditam no mito do mérito do chef branco, mas é um texto curto e realista de como são invisibilizadas as mulheres que inventaram as melhores comidas desse país. Que fritam o quiabo para não babar, que colhem a folha na cerca sem se queimar ou se espetar, que botam dendê no caruru, no vatapá e que fazem todo mundo ver caldeirão ferver.

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