Se as pessoas que se posicionam contra as cotas raciais nas universidades e nos concursos públicos se posicionassem com a mesma voracidade contra a violência racista que insiste em assolar a parcela negra da população brasileira, certamente o racismo diminuiria – e muito. É nítido que o tímido acesso de negros e negras proporcionado pelas poucas políticas de promoção à igualdade racial incomoda muito mais do que cinco jovens assassinados com 111 tiros pela polícia, que deduziu equivocadamente que eles eram suspeitos única e exclusivamente porque eram negros. Portanto, ter negros em um país racista não incomoda os brancos quando não se busca implantar soluções para sanar as desigualdades.

Falar de cotas com pessoas brancas que gozam de seus privilégios é como falar que a escravidão seria considerada ilegal e que todos os negros teriam o direito de serem livres com os senhores donos de escravizados no período escravocrata. Imediatamente, esses brancos começam a externar uma falsa preocupação com o bem-estar da parcela negra. Certamente, você se lembra qual era o argumento para não se aprovar a PEC das domésticas. De acordo com eles, as empregadas domésticas não poderiam ter o direito trabalhista assegurado como as demais profissões, senão ficariam desempregadas. E como eles querem o bem delas, diziam que elas mesmas deveriam lutar contra o direito de ter sua carga horária, atribuições e salários regulamentados e respeitados.



Atualmente, essa parcela branca, além de demonstrar uma preocupação exacerbada com a mestiçagem e principalmente com os pardos em razão das bancas de heteroidentificação que torna um pouco mais difícil burlar os processos seletivos, passou a afirmar que vivemos em uma democracia racial. Afirmam que negros e brancos possuem as mesmas oportunidades, os mesmos acessos e que, por esses motivos, não é necessário que haja cotas. Afirmam que, em um país que possui pouco mais de 500 anos em que quase 400 deles as pessoas negras foram escravizadas, em pouco mais de cem anos os brancos desapareceram e que aqui ninguém é branco e por isso não são justas as propostas de inserção de pessoas negras em espaços majoritariamente brancos.

O discurso da branquitude tem um poder de persuasão inigualável. Primeiro, eles inventam que entre os seres humanos existe raça e que brancos são superiores aos demais e sustentam essa versão durante muitos séculos para explorar, lucrar, escravizar e obter privilégios. Agora, que tenta-se sanar os prejuízos de séculos de violência que resultou em uma discrepância de acessos, o discurso muda para “somos todos humanos e ofertar para pessoas negras uma proposta de equidade seria injusto com quem é lido e tratado como branco em nossa sociedade”. O pior é que se trata de um discurso simplista e sedutor sobre um assunto que é uma verdadeira ferida aberta em que o brasileiro é convencido cotidianamente de que somos todos iguais. Mesmo sabendo que, quando se abre a porta do consultório, o médico que se encontra do outro lado da mesa é quase sempre branco. Mesmo sabendo que a maior parte da população é negra, o sistema de justiça, os políticos eleitos, os cargos de gestão no setor público e privado possuem a característica comum de serem ocupados por homens brancos.

É cansativo lidar com tamanha desonestidade argumentativa que tem como único intuito resguardar o privilégio de manter brancos os espaços que pagam os melhores salários, que proporcionam saúde, educação e moradia digna. É assustador ver pessoas negras e brancas aderirem a esse discurso inverídico que não precisa de muita dedicação intelectual para se fazer uma breve análise de conjuntura e constatar o óbvio. O óbvio é que quando nos deixamos convencer por esse discurso raso e mentiroso de que cotas para negros é racismo reverso com os brancos.

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