Se tem uma negona conhecida internacionalmente por sua luta constante pela igualdade racial de gênero e de classe, essa mulher é Angela Davis. Uma intelectual do Planeta que todas as pessoas deveriam conhecer. Ter o mínimo de contato com sua trajetória que inspira consciência, senso de justiça e igualdade.

 

Em 2018 eu tive a satisfação de conhecê-la pessoalmente na comemoração dos 30 anos do encontro nacional de mulheres negras que foi celebrado em Goiânia. Os maiores nomes da militância do movimento de mulheres negras estavam presentes e todas as atenções se voltaram para a fala dessa filósofa digna de todo nosso respeito e admiração. Sim, o contexto das relações raciais estadunidenses tem suas peculiaridades por ser um racismo escancarado e assumido, em certa medida, diferente do racismo no Brasil que se sustenta na hipócrita negação de sua existência. Mas há uma similaridade sem fim, por ambos os países terem sido construídos com a exploração da mão de obra africana escravizada. Isso faz com que as reflexões de Angela Davis ecoem em todos os países da diáspora africana e hoje é possível encontrar diversos livros traduzidos da autora traduzidos no Brasil. Dentre eles quero destacar o “Angela Davis: Uma autobiografia” que foi traduzido e publicado em 2019 pela editora Boitempo. Essa escolha não é porque esse livro é o melhor ou mais importante na minha opinião, mas sim porque é uma introdução sobre a potência que é Angela Davis e conta uma breve história de seus primeiros anos na militância já que originalmente foi publicado em 1974.

 

Foi através da autobiografia que descobri que Angela nasceu em 1944 e foi criada em Birmingham, Alabama (onde conheceu as quatro meninas mortas no atentado à bomba na Igreja Batista em 1963). Ela concluiu o ensino médio na escola integrada Elisabeth Irwin em Nova York, formou-se em Brandeis e obteve um doutorado em filosofia pela Universidade Humboldt de Berlim.

 

Angela se tornou conhecida em 1969, quando, por perseguição do então governador da Califórnia, Ronald Reagan, a UCLA demitiu Angela, então professora do departamento de filosofia, por ser membro do Partido Comunista. Quando um tribunal decidiu que o motivo para a demissão era ilegal, a universidade despediu-a novamente alegando que ela tinha usado linguagem inflamatória.

 

Mas a sua luta e notoriedade estavam só começando. Em 1970, Jonathan Jackson fez cinco reféns no tribunal do condado de Marin numa tentativa de libertar o seu irmão, um dos três reclusos, conhecidos como Irmãos Soledad, acusados pela morte de um guarda na prisão da Califórnia. Na confusão que se seguiu, quatro pessoas foram mortas, incluindo Jackson e um juiz. Davis, que liderou o Comitê de Defesa dos Irmãos Soledad, comprou as armas usadas na tentativa de fuga. As autoridades a acusaram de assassinato, sequestro e conspiração. (Ela afirmou que Jackson havia pegado as armas sem o seu conhecimento.) Angela passou a viver foragida, mas foi presa alguns meses depois. Aguardando julgamento, ela ficou detida por 14 meses.

 



O caso fez dela uma causa célebre. “Libertem Angela Davis” tornou-se um grito de guerra para os jovens. Protestos foram realizados em apoio. Os Rolling Stones e John e Yoko escreveram canções sobre ela.

 

Somente no início de 1972, os advogados dela conseguiram libertá-la sob fiança. Em junho, ela foi absolvida de todas as acusações, e o júri concluiu que ela não estava envolvida no crime ao qual ela tinha sido acusada. Angela fez uma turnê internacional de palestras e envolveu-se em inúmeras causas políticas; sua autobiografia foi publicada em 1974.

 

A obra é mais uma história política do que um livro de memórias tradicional. Na verdade, Angela inicialmente recusou a oferta para escrevê-lo, não querendo “contribuir para a tendência já generalizada de personalizar e individualizar a história”. Mas sua editora, ninguém mais e ninguém menos que Toni Morrison, a convenceu da importância de fazer um livro de memórias políticas. Mais do que isso, porém, o livro é lido como se enquadrando na longa tradição dos diários de prisão.

 

A prisão foi uma experiência cruel, mas que mudou a forma como Angela passou a analisar o mundo. Em sua autobiografia ela começa narrando sua fuga para o subsolo, sua captura e seus primeiros meses na cadeia, antes de voltar aos primeiros anos e depois retornar ao julgamento e ao tempo de prisão. É nessas seções que o livro realmente ganha vida. Há um imediatismo em sua escrita, suas descrições da vida na cadeia são táteis e envolve quem lê.

 

Uma das tantas lembranças comoventes compartilhadas na autobiografia é a de uma prisioneira entrando em trabalho de parto sozinha em um corredor sem nenhuma assistência. Ali Angela também detalha os diversos problemas psicológicos não tratados ou medicados à revelia de orientação médica quando se tratava dos presidiários. Ela registra as condições desumanas e a cultura prisional de se unirem em “famílias” para apoio mútuo.

 

Seus relatos e descrições das relações homossexuais dentro da prisão são dignas de nota para os ouvidos contemporâneos. Ela reconhece na nova introdução que a maneira como ela “adotou acriticamente premissas homofóbicas” se destaca como uma ferida na pele. (O mesmo acontece com seu feminismo incipiente, que ela desenvolve substancialmente agora). Ao lermos as outras obras da autora é gritante o tanto que foi elaborando seu pensamento criticamente em relação às questões de gênero e de sexualidade.

 

No entanto, na sua crítica ao sistema carcerário, Angela sempre esteve muito à frente da curva. A era de encarceramento severo e punitivo que começou quando ela estava na prisão e que atingiu o auge nos anos 90 deveria estar chegando ao fim. Ela deveria ser uma inspiração para os reformadores prisionais de hoje pela forma como humaniza os encarcerados e incorpora a sua experiência nas desigualdades estruturais mais amplas da sociedade.

 

 

O livro se propõe a diversas reflexões urgentes, e ainda hoje mesmo depois de tanto tempo escrito, pertinentes. Na prática, as opiniões dela sobre o racismo e o ativismo político permanecem extremamente relevantes. Como ela observa na introdução, o livro gira em torno da violência estatal: a violência da polícia, a violência das cadeias e prisões.

 

Para ela, há uma tendência que busca ver estas mortes como o resultado de transgressões individuais, e não como o produto de leis inadequadas e de um policiamento deficiente. A história de Angela e o longo arco que liga 1972 a 2024 são um lembrete claro de quão profundamente enraizados estes problemas estão na vida americana e no mundo.

 

São muitas outras reflexões que Angela Davis faz ao longo de sua vida, que desperta em nós uma criticidade quanto a esse sistema opressor, mas uma autobiografia é uma oportunidade ímpar de conhecer uma mulher negra que criou a oportunidade de se autodefinir. São oito décadas muito bem vividas, oito décadas que ela fez da sua própria vida um projeto político em prol do coletivo. Viva! Viva Angela Davis.

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