Que as mulheres negras foram forjadas nessa sociedade para limpar, cozinhar e cuidar não é novidade. Na verdade, é uma realidade construída desde o período escravocrata. Quem nunca ouviu o ditado racista e machista que diz: que branca é para casar, mulata para forunfar e preta para trabalhar?
Pois é, estamos no mercado de trabalho antes mesmo desse mercado existir de fato. No período escravocrata já fazíamos micro-revoluções, sendo pretas de ganho com o tabuleiro na cabeça para comprar nossa própria alforria. Era fácil? Não, não era, mas Barbara Gomes de Abreu Lima, uma crioula forra, conquistou fortuna mesmo sendo negra no período escravocrata na histórica cidade de Sabará (MG). Já Carolina Maria de Jesus, nascida em 1914, poucas décadas depois da abolição da escravatura, se tornou o maior nome da literatura desse país. Ela foi traduzida para mais idiomas do que seu contemporâneo colega escritor Jorge Amado.
Nunca fomos relapsas, resignadas e conformadas com as relações desiguais, também nunca perdemos tempo parando para reclamar. Seguimos em frente, fazendo das tripas coração para não nos rendermos às violências cruéis que insistem em nos perseguirem historicamente. Hoje, além de ótimas cozinheiras, babás, e enfermeiras nós também somos médicas, juízas, engenheiras, executivas, acadêmicas, professoras e muito mais. Acordamos cedo sim para limpar a cidade, mas também acordamos para tomadas de decisão.
Nomes como Benedita da Silva, Jurema Werneck, Nilma Lino Gomes, Conceição Evaristo, Carla Akotirene, Sueli Carneiro, Cida Bento, Petronilha, Maria Mazarello, Benilda Brito são exemplos vivos de mulheres pretas que só comprovam o que disse e não me deixam mentir. Seguimos entrando e saindo dos mais diversos espaços de cabeça erguida, com nossos crespos, nossas tranças e nossos turbantes. Vivendo como qualquer outra pessoa. Mas quando não nos propomos a ser servil por qualquer motivo nos chamam de "preta metida", arrogante, que se acha e dizem que não temos humildade.
A mulher branca decidida e altiva recebe o título de empoderada, a negra a alcunha de metida. Tudo isso na tentativa de intimidar e deslegitimar qualquer passo dado em direção contrária ao espaço que a branquitude forjou dizendo que era nosso. Amanhã já é março, mês das mulheres. Mês que saem muitas entrevistas e matérias falando da conjuntura e da realidade das mulheres no Brasil e mais uma vez estamos com os piores índices quando se trata de desemprego, faixa salarial, acesso à saneamento básico, entre outras questões urgentes e necessárias, como o alto índice de feminicídio quando se trata das mulheres negras.
Mas é importante pontuar que essas mazelas não nos definem, buscam nos limitar, mas não nos definem. E dizer isso não é querer fingir que está tudo bem, que não continuamos enfrentando cotidianamente o racismo, o machismo e a pobreza. É entender que isso não é inerente a nós, mas sim construído como se fosse. Tanto é que historicamente presenciamos algumas tantas das nossas que burlam o sistema e são invisibilizadas.
É importante entrar este mês de março conscientes da nossa intersecionalidade, mas também da nossa força, perspicácia, inteligência, resiliência e alegria de viver, mesmo diante do caos imposto por quem tenta nos fazer duvidar de nós mesmas. Uma das estratégias do racismo é fazer com que fiquemos ocupadas dando atenção a ele e não façamos mais nada. Temos que ficar atentas ao racismo? Óbvio que sim, mas não podemos ser resumidas a esse lugar.
Esse é um convite para que mesmo quando somos taxadas como pretas metidas, arrogante ou qualquer outro termo pejorativo, sigamos atentas e fortes em direção aos nossos objetivos. É um convite a pesquisar e refletir sobre as tantas mulheres negras que fizeram e ainda fazem a revolução. É um convite para nos inspirarimos em trajetórias reais e possíveis. Neste mês de março dedicarei essa coluna para falar um pouco mais dessas mulheres que orgulham e inspiram tantas de nós. Esse é convite para fazermos isso juntas.