Foto tirada em frente ao Teatro Francisco Nunes, onde as estátuas irão ser instaladas
 -  (crédito: Maxwell Vilela)

Foto tirada em frente ao Teatro Francisco Nunes, onde as estátuas irão ser instaladas

crédito: Maxwell Vilela

Quem me apresentou Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus foram os escritos que elas deixaram. Carolina eu conheci via "Quarto de despejo: diário de uma favelada” e Lélia através do texto “Racismo por omissão”. Quanto mais eu as conhecia, mais queria conhecê-las, mais lamentava por não ter nascido alguns anos antes. Para além de conterrânea poder ter sido contemporânea dessas duas mulheres que me inspiram nessa trajetória de mulher preta intelectual.

 

Lélia Nasceu em 1935 e faleceu em 1994 quando eu tinha apenas 10 anos de idade. Já Carolina nasceu em 1914 e faleceu bem antes de eu nascer em 1977. Se ela estivesse viva teria completado 100 anos no último 14 de março. Quando Lélia nasceu Carolina tinha apenas 21 anos de idade. Mesmo ambas sendo mulheres pretas nascidas em Minas Gerais e posteriormente tendo migrado para outras capitais sudestinas elas trilharam caminhos bem distintos. 

 

A vida escolar de Carolina durou pouco mais de um ano no Colégio Allan Kardec na cidade de Sacramento. Ou seja, por volta de 1923 quando ela tinha nove anos de idade se viu obrigada a largar os estudos. Mesmo tendo permanecido por tão pouco tempo na escola era um diferencial importante naquela época saber ler e escrever. Já Lélia era graduada em História e Filosofia pela UEG ( antiga Universidade do Estado da Guanabara e atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Em seguida se pós graduou em Comunicação e Antropologia. 

 

 

Carolina Maria de Jesus com menos de dois anos de estudo formal se tornou um dos maiores nomes da literatura brasileira. Nem o renomado escritor Jorge Amado que é seu contemporâneo conseguia superar as vendas e traduções da obra de Carolina. Uma obra autobiográfica no formato de um diário que contava seu dia a dia como mulher, preta, mãe, favelada que sobrevivia e sustentava dois filhos e uma filha coletando papéis para reciclar na cidade de São Paulo. Uma reflexão densa e crítica de uma mulher que residia na extinta favela do Canindé em um barraco e que almejava a dignidade de morar em uma casa de alvenaria. Esse diário começou a ser escrito em 1955, se tornou livro em 1960 e seis meses depois de seu lançamento a obra alcançou a marca de 90 mil exemplares vendidos; número que até hoje é considerado muito alto para uma edição, ainda mais de estreante. O livro "Quarto de Despejo" foi traduzido para treze idiomas e vendido em mais de quarenta países.

 

Já Lélia, chegou a docente no Instituto de Educação no Colégio de Aplicação na UERJ, na Universidade Gama Filho e também na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela se destacou como professora na PUC do Rio de Janeiro chegando a chefiar o Departamento de Sociologia. Imagina o que é isso para a penúltima filha de um casal pobre que teve 18 filhos? O pai de Lélia era um homem negro que trabalhava como ferroviário e sua mãe uma mulher indígena que trabalhava cuidando da casa, dos filhos e das filhas. Pois é, Lélia foi a primeira mulher a sair do país para divulgar a verdadeira situação da mulher negra brasileira. Foi Vice-Presidente do primeiro e do segundo seminário da ONU sobre a “Mulher e o apartheid”, representante brasileira do Fórum da Meia Década da Mulher em Copenhague na Dinamarca em 1980. Ela também foi convidada especial da ONU para conferência sobre “Sanções” contra a África do Sul em Paris na França em 1982. Lélia também é uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado e do Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga. Em 1990 ela se transformou em uma grandiosa referência nas organizações de mulheres negras e também na formação acadêmica. Mesmo depois de sua morte, em 1994 suas reflexões críticas e antirracistas, não pararam de circular, na verdade ganharam ainda mais alcance.

 

Depois de conhecê-las, ler todos os seus livros e tudo que me foi possível como suas biografias, entrevistas não podia guardar esse conhecimento e acesso só para mim. A vontade de gritar para todo mundo ouvir o nome dessas duas intelectuais me é muito forte, mas a minha capacidade de alcance é muito limitada. Comecei vendendo os livros delas e de tantas outras intelectuais negras em Belo Horizonte quando abri as portas da livraria Bantu. Mas ainda sentia que era muito pouco diante da grandiosidade de ambas só falar sobre elas e vender seus livros. Na verdade era insuficiente.

 

Mas agora tenho a oportunidade de homenagear as duas através da idealização de suas estátuas que eu fiz e será instalada no centro da cidade dentro do parque Municipal bem em frente do Teatro Francisco Nunes. Uma idealização que só deixou de ser um sonho utópico quando encontrei e dividi essa vontade com uma outra mulher preta, de axé, formada em direito e também belo-horizontina chamada Jozeli Rosa. Ela atua em diversas frentes e em uma delas como chefe de gabinete da deputada Bella Gonçalves que aderiu, apostou e destinou uma emenda parlamentar que coloca na rua, pra todo mundo ver, admirar, tirar foto e se inspirar, as estátuas de Lélia Gonzalez e Carolina Maria de Jesus.

 

De acordo com a Secretaria de Cultura da Prefeitura de Belo Horizonte que é quem está executando a obra, as estátuas estarão disponíveis ainda esse mês e o lançamento se dará no dia 30 de junho. Como Jozeli e eu somos a continuidade do sonho das nossas ancestrais e aprendemos no movimento de mulheres negras que nossos passos vêm de longe essa é uma homenagem dos movimentos de mulheres negras de Minas Gerais à Carolina e Lélia.