Ela gritou que é preta de direita, e daí?
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Ela gritou que é preta de direita, e daí?

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Que a população negra brasileira não é um bloco homogêneo, sem contradições, influências e construções próprias, acho que todo mundo está cansado de saber. A diversidade desse grupo racial é múltipla, como quaisquer outros possuem um protagonismo ideológico por vezes compartilhado, mas ainda assim detém uma escolha individual, não é mesmo? Mas então, por que será que a declaração de uma mulher preta, retinta, oriunda do subúrbio carioca se dizendo politicamente de direita causou tanta repercussão? Quando Jojo Todynho fez um vídeo em sua rede social se dizendo "preta de direita", pautou a imprensa e inúmeros debates nas redes sociais e fora delas, detalhe, a poucas semanas das eleições municipais.


O fato é que Sílvio de Almeida já está lascado nessa altura do campeonato

 

A ascensão da direita e da extrema direita seria inviável sem a adesão e os votos da parcela negra da população brasileira, portanto, matematicamente, é óbvio que a Jojo Todynho não é uma exceção ao lado de figuras contemporâneas como o ex-vereador de São Paulo, Fernando Holiday e o ex-presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo. Mas a pergunta continua: por que será que uma pessoa negra se autodeclarar de direita causa tanta repercussão em um país com o regime político democrático? Será mesmo que o caminho ideal para todas as pessoas negras seria pegar a primeira à esquerda e por lá seguir a vida toda? Afinal, o que difere a esquerda e a direita historicamente quando o assunto é a demanda da população negra? Então vamos lá que esse assunto dá pano pra manga. 

 

Só para começar, acho importante lembrar do Sérgio Camargo, essa figura tão emblemática do mandato federal anterior afirmando que a escravidão foi benéfica para os negros. Afirmando com veemência que a princesa Isabel foi o grande nome que salvou os escravizados, e não Zumbi dos Palmares, como pleiteiam os movimentos negros próximos à esquerda. E, daqui, fico me perguntando: como pode alguém achar benéfico um contingente enorme de pessoas serem sequestradas de seu continente de origem, serem proibidas de professarem a sua fé, sua cultura, serem torturados, estuprados, mantidos em cárcere, vendidos e muitas vezes até mortos em razão da sua cor de pele?  Muitos brancos aplaudiram de pé essa e outras falas com o mesmo teor do Camargo. 

 

Nós, mulheres negras brasileiras, somos ouro 

 

Lembrando que a gestão do Sérgio Camargo foi durante a presidência do Bolsonaro. Ex-presidente do Brasil que se refere publicamente a um quilombola com a seguinte frase: “afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas.” Como bem sabemos, arroba é um termo utilizado para animais. O mesmo Bolsonaro que anteriormente foi questionado sobre um hipotético relacionamento afetivo sexual de um dos seus filhos com uma mulher negra, e ele responde que tal situação é impossível porque eles foram muito bem educados. Pois é, um gestor negro que pleiteia homenagear um membro da família real que escravizou durante séculos o seu povo. Homenagear quem usufruiu da escravidão até o último minuto, sendo o último país a abolir a escravatura, é o perfil escolhido para ocupar um degrau abaixo do topo no governo de extrema direita. 


Já Fernando Holiday seguiu pela cartilha que versa contra as políticas de promoção da igualdade racial e em seu mandato como vereador. Chegou a trabalhar para tornar inconstitucional a política afirmativa de cotas raciais para negros e indígenas no ensino superior. Cotas essas que são uma conquista construída e defendida pelos movimentos negros brasileiros. Assim como Camargo, Holiday também é contra a validação de Zumbi dos Palmares como herói brasileiro. Importante pontuar que Holiday é um homem negro autodeclarado homossexual e que a direita, hoje, se entrelaça com a bancada evangélica que condena o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo. 


E, por fim, chegamos a Jojo Todynho, que chama de pai um homem branco que está se candidatando a vereador com o apoio da cantora. Ela figura nas redes sociais do candidato como a única pessoa preta nas fotos, assim como Hélio Bolsonaro, conhecido também como “Negão do Bolsonaro” nas fotos do ex-presidente. Posa em fotos ao lado da Michele Bolsonaro e, quando é questionada e criticada, faz um vídeo nas redes sociais e  grita em alto e bom som que é uma mulher preta direita. 


As três pessoas citadas adotam o discurso da direita e da extrema direita, a direita brasileira se diz conservadora e tem como foco principal beneficiar cidadãos ricos, donos de grandes empresas, homens brancos herdeiros. Como citado anteriormente, não é raro encontrar posicionamentos racistas, homofóbicos, misóginos, transfóbicos, preconceituosos em relação a pobres, favelados e mulheres. Um conservadorismo que propõe conservar a velha e histórica hierarquia de poder em que o branco manda e as pretas e pretos obedecem.

 

Mas como é ser preto e preta de direita se a a maioria da população preta não tem sequer os serviços básicos garantidos? E, sendo assim, como é que se posiciona a favor da parcela política que defende mais privatização, mais poder para aquelas empresas que roubam deles o direito aos serviços básicos? Fazer parte daquele grupo que não tem uma aposentadoria justa e defender uma reforma que corte os direitos dos aposentados? Enfim, como é ser uma pessoa que defende seus algozes, aqueles que mais lhe prejudicam e que lhe roubam as suas riquezas? 


A maior parte da população negra não teve a mobilidade de classe da Jojo Todynho, nem o salário de um vereador de São Paulo, e muito menos o de um presidente da Fundação Palmares. Mas muitos são integrantes das igrejas evangélicas lideradas por pastores com vínculos políticos com a direita. Se sentem integrados pela via da religião. Negam as adversidades promovidas pelo racismo e encaram tudo pela lente do inimigo espiritual, fazendo valer como verdade um discurso de meritocracia racial e acreditando que ali todos são irmãos em Cristo sem desvincular o afeto religioso do político. 


Talvez Franz Fanon, bell hooks, Abdias Nascimento, Neuza Santos Souza em suas obras  consigam explicar esse fenômeno que faz com que uma pessoa preta se alie a um sistema político que se auto-declara publicamente contra tudo que ela é.  A esquerda está muito longe de contemplar democraticamente as demandas sociais das pessoas negras desse país? Sim, está, disso eu não tenho dúvidas, mas para pretos e pretas o caminho da direita é um tiro no próprio pé certeiro.

 

A esquerda, por mais complicada e difícil que seja o diálogo, não nega que o racismo existe, não mais ignoram os dados que comprovam a ausência e ineficiência das políticas públicas para as pessoas negras. Não é negacionista como a direita quando o assunto é relações raciais. Talvez seja por isso que causa tanta repercussão ouvir uma mulher negra dizer que é de direita, talvez porque a direita trabalha para conservar a velha estrutura hierárquica em que brancos ficam no topo e pretos, onde der e se der.