Outro dia estava em pé dentro de um ônibus lotado no final da tarde, a maioria das pessoas que compartilhava aquele transporte comigo estava voltando para casa após um dia exaustivo de trabalho. Todo mundo que já viveu essa aglomeração sabe bem que, dentro do busão, não existe conversa entre duas pessoas, e sim uma conversa pública entre duas pessoas. Até porque duas pessoas falam e as demais participam escutando, algumas deixam entrar por um ouvido e sair pelo outro, outras refletem silenciosamente, uns pensam: “quem sou para julgar?”. Já eu escuto julgando mesmo, pelo menos nesse assunto que vou descrever aqui.


Duas mulheres aparentando ter entre 45 e 50 anos começaram a conversar sobre as eleições municipais e uma delas animada contou em quem queria votar para vereador. A outra mulher, de forma hostil, respondeu que agora ela só vota para presidente, que não vota para prefeito, vereador, deputado, nada, que anula ou vota em branco. Elevou a voz para que mais pessoas pudessem escutar enquanto falava: "eles não me dão nada, então não vou dar meu voto para eles”. Uma revolta legitima ao meu ver? Sim, muito legitima, mas olhando para ela, julguei que não é uma revolta inteligente. Era visível que ambas eram da classe trabalhadora, todas as duas, além de mulheres, eram negras, uma mais retinta, a outra com o tom da pele um pouco mais claro, mas visivelmente negra. 

 



Enquanto eu escutava a conversa alheia, passava um mundo de informações na minha mente. Uma delas é que o transporte público em BH, assim como em outras metrópoles brasileiras, é um ambiente insalubre que tira a dignidade de qualquer pessoa que depende dele para ter uma mobilidade. São muitas as pessoas que vão e voltam viajando, em pé, longas distâncias todos os dias, pagando um valor alto pelas passagens. E mesmo dentro, literalmente, dessa negação de direitos, não conseguem refletir sobre a importância de exercer o direito ao voto, principalmente quando se é mulher, preta e periférica. Tudo isso porque nossa referência política coletiva é masculina, branca e burguesa. Tudo isso porque quem fez e ainda faz política nesse país é um perfil de pessoas que nunca utilizou para se locomover diariamente ônibus, metrô, MOVE e demais transporte públicos. Portanto, a política desse país, seja de transporte, saúde, segurança, educação, economia, são elaboradas por quem não se consulta em hospitais públicos, não matriculam suas crianças em escolas públicas e, portanto, não consideram e nunca vão considerar o perrengue nada chique de mulheres, pretas e pobres.   


Como eu disse há dois parágrafos, é legítimo sim a pessoa se revoltar diante desse cenário tenebroso de poder político. Acrescento ainda que tem uma certa coerência, mas a revolução não é pacífica e pode ser feita nas urnas e com uma arma chamada voto. 27,8% da população brasileira são de mulheres negras e apenas 2,36% do parlamento são de mulheres com esse perfil racial. Das 41 cadeiras no legislativo na Câmara Municipal de Vereadores de BH, apenas 2 são ocupadas por mulheres negras atualmente, e esse é o recorde. E toda vez que penso sobre isso, me lembro de um coleguinha branco que conheci no meu primeiro estágio que, ironicamente, falava assim: "o mal de quem não gosta de política é ser comandado pelos que gostam, e eu gosto”. Ao escutar isso, eu só me lembrava da máxima ensinada nos territórios que eu cresci: que política, religião e futebol não se discute. Pois é, pelos meus pensamentos esboçados aqui, deu pra ver que eu desobedeci e discuto, sim, política. Não quero mais ser representada por quem representa tudo menos mulheres como eu, e as duas que estavam sentadas no ônibus. Confesso que tive que me conter para não ser mal educada e me intrometer na conversa alheia. Ainda bem que chegou meu ponto e eu desci sem falar nada. Talvez tenha conseguido entrar muda e sair calada dessa conversa pública porque tenho outros espaços como esse aqui para expressar a importância de se levar em consideração a representação política, para que uma democracia realmente exista. Esses pensamentos podem até parecer um tanto quanto utópicos, mas a história de Antonieta Bairros, que foi a primeira deputada negra no Brasil lá em 1934 – isso mesmo, 90 anos atrás – me faz acreditar na força de nós, mulheres negras, quando a nossa referência não se restringe aos brancos que lá sempre estiveram.


Portanto, óbvio tem que ser dito, então vamos a ele. Não é democrático um sistema que elege reiteradamente ricos se a maior parte da população é pobre, que elege reiteradamente uma maioria de homens se a maior parte da população é formada por mulheres, que elege reiteradamente pessoas brancas se a maior parte da população é negra. Tem alguma coisa errada nessa democracia, e muito possivelmente são as escolhas que fazemos ou deixamos de fazer nas urnas. Portanto, nesse domingo, não me chame, porque eu não vou, tenho compromisso de votar em quem se parece comigo, que é competente, inteligente, capacitada e sabe bem o que pessoas como nós precisamos. Não adianta insistir, porque eu não posso, domingo já tenho compromisso de votar em uma mulher preta.

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