Que as características negras são tratadas como defeituosas, inadequadas e desproporcionais para os padrões de beleza da sociedade brasileira não é novidade pra quem tem o mínimo de criticidade. O que se sustenta conceitualmente como um corpo bonito são as características inerentes ao corpo branco. Ou seja, nariz e lábios finos ou com preenchimento labial, mas com a pele branca, olhos claros, textura de cabelo liso e por aí vai. Quem possui uma ou duas características que se aproximam desse padrão, mas não todas pode ser taxado como quem possui uma beleza “diferente” ou pior, uma beleza "exótica". 

 

 

Tenho que reconhecer que atualmente vivemos uma liberdade corporal nunca vista em relação aos nossos cabelos crespos. Pelas ruas dos grandes centros encontramos mulheres negras com diversas texturas de cabelos sem procedimentos químicos, usando black power, tranças soltas, nagô e dread, o que pode passar a falsa sensação que a diversidade é plenamente incluída nos padrões de beleza, mas o buraco é bem mais embaixo. 

 



 

Até aqui o que eu disse é uma novidade para zero pessoas. Mas  ontem me deparei com o vídeo que me fez mensurar o quão profunda é a violência, imposta por esses padrões baseada num perfil eurocêntrico, quando se é mulher negra. Esse vídeo foi produzido pela médica Maya Teotonio Simão, ginecologista, obstetra e negra. O título do vídeo é: “Como decido se minha vulva é bonita ou não?”. Ela compartilha de forma breve o fato de ser recorrente em seu consultório a insatisfação das mulheres com a própria vulva. Maysa também argumenta sobre a construção do que achamos belo e daquilo que não achamos belo.

 


Para a ginecologista "É  normal, é comum as mulheres observarem a própria vulva. Minha grande pergunta é de onde está vindo o padrão no qual elas estão se espelhando? Eu sei por exemplo em qual padrão eu  me espelhava quando eu queria meu cabelo liso. Em qual padrão essas mulheres, as mulheres estão se espelhando quando elas falam que a coloração, o formato, o tamanho da sua vulva deveria ser diferente? Eu acho que essa é a grande pergunta, muitas vezes em filmes pornôs, em fotos da internet, a maioria é isso. A maioria nunca viu uma outra vulva, a maioria se espelha nessas vulvas. Que são vulvas irreais, vulvas já muito modificadas. Essa é a grande pergunta, não o incômodo, porque o incômodo ele pode surgir, em relação a vulva e em relação a outras partes do nosso corpo. Mas qual padrão estético? Muitas vezes completamente irreal.

 

Um vídeo curto, divulgado na rede social da médica e que incita uma reflexão muito profunda sobre a relação das mulheres com o próprio corpo. Uma relação pautada também por um padrão de beleza novamente inspirado na corporeidade branca. Portanto, diante desse padrão, mulheres  negras não possuem uma vulva bonita por não ter a coloração, o formato e o tamanho dito ideal. Em uma sociedade em que as mulheres negras são hipersexualizadas historicamente e que foram alvos de estupros desde o período escravocrata pelos seus senhores brancos. Como seres sociais as relações importam e muito para as pessoas de forma geral, inclusive para as mulheres negras. A forma como nós mulheres negras nos vemos e muitas vezes nos atribuímos valor mesmo que injusta está diretamente atrelada a forma como a sociedade na qual estamos inseridas nos tratam e também nos retratam.

 

A maioria de nós não conhecemos “o poder da autodefinição”, ensinada pela Audre Lorde. Para que possamos nos autodefinir para além das definições previamente impostas pelo seguimento que dita para o senso comum o quão belas somos do cabelo crespo até a vulva. Muitas das nossas não conhecem as obras da intelectual Ana Cláudia Lemos Pacheco que oferece uma visão crítica sobre a mulher negra em sua afetividade e solidão e acabam por acreditar que se mutilar voluntariamente em uma cirurgia estética  em busca de uma vulva com beleza padrão irá solucionar um problema muito maior do que qualquer órgão sexual. Eu gostaria muito que todas as mulheres negras que caíram nessa armadilha racista, eurocêntrica, machista e patriarcal tivessem a oportunidade de ler o discurso “e eu não sou uma mulher” da Soujouner Truth, ou o poema “Mulata Exportação” da Elisa Lucinda. A Conceição Evaristo diz que a noite não adormece nos olhos das mulheres e sinceramente eu acredito nela. São tantas as intelectuais que trazem reflexões importantes urgentes e necessárias que nos libertam dessa vala cruel que dita dentre outras coisas  o quão confortável estamos numa relação sexual com nossas vulvas e aos poucos nos induzem a um sentimento de inadequação nos tirando o direito de gozar plena  em um relacionamento afetivo sexual.

 

Pois é, não há resposta simplista para um problema complexo de relações raciais e de gênero mesmo quando se trata do próprio corpo, da intimidade de cada uma de nós. E o único caminho para essas questões que acabam por permear as relações, inclusive entre quatro paredes sozinha em casa  de frente para o espelho, é aprender a identificar como colonizaram as nossas mentes nos fazendo acreditar que brancura e beleza são inerentes. É questionar esses padrões e aprender amar a negritude como ensina a bell hooks  em suas vasta obra. 


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