Na última semana, inspirada por um trecho do livro "A crítica da Razão Negra" do filósofo Achille Mbembe eu fiz a seguinte pergunta aos meus alunos de uma turma de jornalismo de uma universidade federal: Quem aqui gostaria de ser tratado como um negro no Brasil? Em uma turma com uma média de 40 alunos, ninguém levantou a mão. A turma que estava diante dos meus olhos é formada por jovens do quarto período, um tanto quanto diversa racialmente e com uma presença quase equânime de homens e mulheres.


Parada diante da reação da turma, eu senti lá no fundo uma pontinha de esperança. Senti também uma gratidão enorme pelas minhas mais velhas e pelos meus mais velhos do movimento negro, que lutaram pela implantação da lei 10.639. Essa lei que alterou em 2003 as diretrizes e bases da educação nacional tornando obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas do Brasil, desde o ensino fundamental até o ensino médio. Essa lei também estabeleceu o dia 20 de novembro como Dia da Consciência Negra no calendário escolar.

 




Estou certa que foi o movimento para a criação dessa lei, assim como as outras políticas de promoção da igualdade racial que fizeram com que os meus alunos não mais se rendessem ao fatídico, mas eficiente mito da democracia racial. Essa foi talvez a primeira vez na minha vida que em uma sala diversa racialmente em que não houve um branco que dissesse que o racismo não existe, um negro que afirmasse que nunca sofreu racismo, ou pessoas de uma forma geral que alegassem que não enxergam cor e enxergam seres humanos ou que tratarem desse assunto era querer dividir a sociedade e jogar uns contra os outros.


Mesmo sendo necessário um requinte de crueldade muito grande para negar a existência de desigualdade social motivada pelo racismo na sociedade brasileira isso acontecia e ainda acontece com frequência. Já que estou falando de uma turma de jornalismo faz todo sentido lembrar que o diretor de jornalismo da emissora de TV Rede Globo publicou um livro chamado "Não somos racistas", um texto em que o mesmo se posiciona, dentre outras coisas, contra a reserva de vagas para alunos negros no ensino superior.


E hoje aqui estou eu, professora substituta de uma disciplina obrigatória chamada "Jornalismo e Relações Étnico-raciais" em uma das maiores Universidades Federais do país. Lembrando que a lei instituída em 2003 obrigava esse ensino somente nos ensinos fundamental e médio. Não foi preciso a alteração da lei para que se compreendesse a necessidade da inclusão da disciplina no curso superior. No quanto agrega na trajetória profissional compreender a realidade diversa de um povo tão diverso.

 


Tenho consciência que a universidade é um ambiente restrito e que poucas pessoas possuem acesso. Mas lá tambéé um lugar de produção de conhecimento, de pesquisa, um lugar deformação profissional e social e que estar diante de uma geração de jornalistas que pensam diferente do Ali Kamel é poder experimentar um pouco de esperança nas possibilidades de mudanças nesse eterno 14 de maio de 1888 que vivemos.


Hoje, 20 de novembro de 2024, é dia de celebrar Zumbi dos Palmares mesmo sabendo que continua perigoso ser negro e negra no Brasil. Até porque é difícil  querer ser uma pessoa negra quando se é alvo, que além do histórico de tortura e demais violências do período escravocrata vivemos uma necropolítica cotidiana. Vivemos em um país em que a polícia mata com 111 tiros cinco jovens desarmados dentro de um carro. Em que os seguranças do supermercado Carrefour mata um cliente negro em seu estacionamento e continua funcionando como se nada estivesse acontecido. Em que mulheres negras que ousam a serem eleitas democraticamente a parlamentares são assassinadas ou constantemente ameaçadas de morte.

 


É dia de celebrar porque é a primeira vez que se dedica um feriado nacional à população negra. Essa parcela importantíssima para a economia, educação, saúde, alimentação, enfim todos os setores desse país continental chamado Brasil. Mesmo não querendo ser tratados como negros e negras ser é motivo de orgulho, nossa resistência para (sobre)viver individualmente, coletivamente, politicamente, culturalmente e lindamente como seguimos fazendo por aqui.


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Seguimos chorando e rindo assim como Vô Vicêncio, personagem da obra Ponciá Vicêncio da escritora Conceição Evaristo. Porque como bem canta Milton Nascimento na sua música Maria Maria: "Quem traz na pele essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida."

 

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