Como bem sabemos, o racismo invalida toda e qualquer perspectiva de conhecimento que não seja branca e ocidental. Portanto é um desafio gigantesco lutar contra a invisibilidade, exclusão e silenciamento do protagonismo da população oriunda do continente africano no Brasil. Foram inúmeros intelectuais que se movimentaram para produzir e fazer circular os conhecimentos e as contribuições para além de uma mão de obra escravizada da população negra no nosso país e no mundo.




 

Inúmeras pesquisadoras e pesquisadores não se intimidaram e se debruçaram em investigar diversos campos de conhecimento abordando as perspectivas da parcela negra. São tantos que nem se eu quisesse conseguiria listar aqui todos os nomes que foram fundamentais para que nossa história e nosso conhecimento não passassem literalmente em branco. Acho importante pontuar isso, porque um dos argumentos racistas e que promove o epistemicídio é a afirmação que esses estudos são recentes, o que não condiz com a realidade. 


Tanto é que hoje completa 22 anos que a Lei 10.639 foi promulgada. Essa é a lei que alterou as Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), tornando obrigatório o ensino da história e cultura afrobrasileira e africana em todas as escolas do Brasil. Nãé um mero detalhe o fato de essa ser a primeira lei assinada pelo então recém-eleito presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A 10.639 foi a primeira a ser assinada, no primeiro mandato do Lula, porque o movimento negro estava articulado e com tudo pronto para mudar a exclusão histórica promovida pelos currículos escolares.


Como disse anteriormente é inviável citar todos os nomes que contribuíram para que essa lei fosse instituída, mas faço questão de destacar a atuação e trajetória de uma intelectual que foi essencial na implantação dessa lei, o nome dela é Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva a primeira mulher negra a integrar o Conselho Nacional de Educação. 


 

Conheci Petronilha em 14 de março de 2018. Estava tomando café em um hotel na cidade de Salvador, ela me abordou e pediu licença para sentar na minha mesa, já que todas as outras estavam ocupadas. Começamos a conversar e eu com aquela sensação que já a conhecia de algum lugar, mas por mais que me esforçasse não conseguia me lembrar bem de onde. Conversa vai, conversa vem e pergunto qual é o nome dela; quando ela me respondeu, me lembrei imediatamente de onde conhecia aquele rosto. O rosto dela estampava a capa do livro que ela  mesma escreveu, que se chama Entre Brasil e África: construindo conhecimentos e militância”, publicado pela Mazza edições. Naquela ocasião, eu era livreira e vendia o livro dela e não conhecia a sua história. Ao retornar da viagem, dei meu jeito de ler e descobri a história de luta e construção dessa mulher, e para comemorar o aniversário desta lei gostaria que todo mundo também a conhecesse.


Petronilha, chamada carinhosamente de Petrô é afro-gaúcha, ela nasceu em 1942, na antiga Colônia Africana de Porto Alegre, onde hoje se situa o bairro Rio Branco. Petronilha teve a infância e a juventude marcadas pela influência da mãe, Regina Gonçalves e Silva, professora da rede pública estadual de ensino que, não por acaso, foi a primeira docente negra a receber o título de Professora Emérita do Estado do Rio Grande do Sul em 1988.

 


Petronilha iniciou sua trajetória acadêmica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1954, com o ingresso na primeira turma do Colégio de Aplicação, onde concluiu o ginásio e o clássico. Em 1961, foi aprovada no curso de letras neolatinas da universidade, dando sequência ao seu percurso acadêmico. Inspirada em sua mãe e em suas professoras, logo após a formatura, em 1965, foi contratada para lecionar francês no mesmo Colégio de Aplicação onde havia estudado. Mais tarde, aos 30 anos e mantendo o vínculo com a UFRGS, passou a ministrar aulas como professora horista de Língua Portuguesa. Por conta de seu profundo compromisso social, durante todo esse período, seguiu dando aulas em escolas noturnas de bairros populares em regiões de difícil acesso no Rio Grande do Sul, atuando não apenas como professora, mas também como coordenadora pedagógica e em conselhos de classe.


 

Na década de 1970, participou de um estudo do Instituto Internacional de Planejamento da Educação da Unesco, trabalhando com professores de todo o mundo. Ao retornar ao Brasil, assumiu uma função no Gabinete de Coordenação e Planejamento da Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Sul, onde foi responsável pela elaboração do II Plano Estadual de Educação, que orientou as políticas educacionais do estado. Posteriormente, Petronilha cursou o mestrado e o doutorado em Educação também na  UFRGS, ao longo dos quais constatou o quanto o trabalho no dia a dia das escolas necessitava ir além dos regimentos e dos planos de ensino. Segundo ela, precisava abranger muito mais do que uma lista de objetivos, procedimentos didáticos e conteúdos, tinha de estar imbricado na realidade social vivida pelos alunos e suas famílias.


Depois de 33 anos de uma extensa carreira na UFRGS, a professora iniciou sua trajetória na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde de 1989 a 2012,dedicou-se cada vez mais à luta antirracista, reafirmando o compromisso inabalável com a educação e com a valorização da diversidade nas universidades brasileiras. Em virtude de sua dedicação às causas negras, em 2002, Petronilha foi a primeira educadora negra a integrar o Conselho Nacional de Educação, sendo relatora de pareceres que regulamentaram as determinações da legislação que estabeleceram as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira. Em menos de um ano no cargo a lei 10.639estava na mesa do presidente Lula prontinha para ser assinada.

 

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Pois é22 anos se passaram daquele 9 de janeiro de 2003. Até hoje a mudança não está sendo tão rápida e tão eficiente como gostaríamos. Essa lei é uma conquista inédita e merece ser lembrada, creditada, celebrada e cobrada nas instituições educacionais. Por isso, seguimos na luta contra o epistemicídio, contra a necropolítica, contra a invisibilidade, contra a exclusão das epistemologias negras e cientes que os nossos passos vêm de longe.

 

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