Etiene Martins
Etiene Martins
Jornalista, pesquisadora das relações étnico-raciais e doutoranda em Comunicação e Cultura na UFRJ
90 ANOS DO NASCIMENTO DE LÉLIA GONZALEZ

Aquela Neguinha Atrevida - Uma carta à Lélia Gonzalez

Saiba que sua história, seu legado intelectual continua muito vivo e nos tornando potentes

Publicidade

Ei, preta. Tá boa? Tem um tempão que eu não te escrevo, não é mesmo? A última carta que te enviei já faz dois anos. Eu demorei, mas não é por falta de pensar em você,  até porque seus ensinamentos me acompanham por todos os lados. Talvez seja por que eu tenha tantas coisas pra falar que fico até meio sem saber por qual assunto começar e acabo procrastinando. Então, vou aproveitar que hoje faz 90 anos do seu nascimento para trocar algumas ideias contigo. Lógico que vou começar pelas alegrias, porque dos problemas não tem como fugir.

 

 

Há poucos anos atrás eu aprendi um conceito com a sua amiga, a filósofa, Sueli Carneiro que me fez enxergar algumas coisas que me incomodaram muito, a ponto de assuntar uma forma de mudar os rumos da história da nossa cidade. Esse conceito que provavelmente você já deve está cansada de saber porque também sofreu na pele é o epistemicídio. Sueli me ensinou que o epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento do nosso povo preto. É um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação de nós negros e negras como portadores e produtores de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não é possível desqualificar as formas de conhecimento do nosso povo sem nos desqualificar também, individual e coletivamente, como sujeitos cognoscentes. E, ao fazê-lo, eles nos destituíram da razão, da condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Aprendi também que é por isso que o epistemicídio fere de morte a nossa racionalidade ou a sequestra, mutila a nossa capacidade de aprender. 

 

 

 

No início fiquei tontinha com essa forma de filosofar da Sueli, mas passando um tempo pensando sobre fui entendendo que realmente o buraco é bem mais embaixo. E antes que esse epistemícidio desse um jeito de sequestrar minha racionalidade e das outras pessoas pretas em minha volta tratei logo de interferir na arquitetura de Belo Horizonte. Uma arquitetura que até o dia trinta de junho do ano passado quando se tratava de estátuas era branca, pálida, sem ginga e sem axé. Até dia 30 de junho, porque mudamos isso. Adivinha de quem é a primeira estátua de pessoa negra da nossa cidade? Eu sei que é uma missão difícil. Afinal, são tantas pessoas que deveriam ficar fixadas na memória coletiva que fica inviável acertar de primeira. Mas como a ideia foi minha e fui eu que escolhi quem seria a primeira estátua negra da nossa cidade, é lógico evidente que escolhi você, minha neguinha atrevida. Mas tendo consciência que a gente do movimento de mulheres negras não andamos só, escolhi outra grandiosa para te fazer companhia no mundo branco das estátuas. Escolhi a nossa escritora internacional, lá de Sacramento, Carolina Maria de Jesus. Antes de escrever essa carta eu conversei com seu filho Rubens Rufino que também esteve no dia do lançamento. Sinceramente, espero que você fique tão alegre quanto ele com essa homenagem, você tinha que vê ele abraçando a estátua emocionado. Outro dia, falando sobre as estátuas, ele me disse exatamente assim: "Minha mãe voltou para terra que ela nasceu e vai ficar lá para a eternidade, acho importante essa iniciativa. Ela está sendo uma semente de autoestima para as crianças negras e não negras e também para os adultos. Desejo que seja referência para outras cidades do Brasil”.

 

Estátua de Lélia Gonzalez

Estátua de Lélia Gonzalez

Acervo pessoal - Etiene Martins

 

Lélia, você tinha que ver o tanto de gente que foi no lançamento. O movimento negro inteiro estava lá, a imprensa, políticos, pessoas de todas as idades, de vários segmentos, tinha gente com o pé quebrado, senhorinha de cadeira de roda, seus familiares, amiga sua que saiu de outro estado e se fez presente, todo mundo foi prestar essa homenagem. Sua sobrinha Eliane puxou um ponto de Oxum em sua homenagem e o público cantou junto. Admito que fiquei muito feliz em ser a idealizadora da sua primeira e até agora única estátua e também da segunda estátua de Carolina Maria de Jesus no Brasil. Me sinto exercitando a neguinha atrevida que mora dentro de mim e que foi você que me apresentou.

 

Atividades realizada pelo Kilombu Manzo para crianças nas estátuas

Atividades realizada pelo Kilombu Manzo para crianças nas estátuas

Acervo pessoal - Etiene Martins

 

Ah, outra coisa, além do lançamento das estátuas no ano passado teve também  o lançamento de um livro chamado "Lélia Gonzalez: um retrato", escrito pela Sueli Carneiro e publicado pelo grupo editorial Companhia das Letras. Uma foto do seu rosto estampa a capa do livro, ficou a coisa mais linda. O conteúdo dispensa apresentações, afinal foi a Sueli que escreveu. Você acredita que têm várias fotos dentro do livro e também uma carta escrita por você para seu irmão Francisco? Fiquei emocionada lendo. Eu tenho um sentimento um tanto quanto contraditório com essa porta que sua obra abriu para algumas pouquíssimas mulheres negras publicarem no maior grupo editorial do país. Eita, olha eu contando a história pela metade. Deixa eu começar pelo início pra você me entender.

 

 

Em 2019 eu tinha a pequena e potente livraria Bantu que ficava ali no edifício Central ao lado da Praça da Estação em BH. Era um empreendimento especializado em literatura negra, eu ofertava desde literatura infantil até filosofia africana.  Eu era bem criteriosa com a curadoria dos livros, fazia pesquisas diárias para oferecer títulos pertinentes para os leitores que confiavam no meu trabalho. Nesse período o único livro seu que circulava era o "Primavera para Rosas Negras” que foi impecavelmente editado por membros do movimento pan-africanista que bancava uma editora independente chamada Filhos da África. Essa editora era em São Paulo e não vendia para livrarias convencionais, mas avaliaram a proposta da Bantu e me venderam os exemplares do seu livro, da Beatriz Nascimento e do Malcolm X. Eu levava minha vida rotineira de livreira preta até que Angela Davis faz um discurso em uma de suas visitas no Brasil e cita você. Em um auditório lotado Angela Davis diz: "Eu sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. Mas por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Acho que aprendi mais com Lélia Gonzalez do que vocês aprenderão comigo.”


Bastou essa fala ser publicada na grande imprensa para que centenas de leitores do país inteiro entrassem em contato comigo para saber se eu tinha algum livro seu. Se a Bantu que era pequena recebeu essa demanda, fico imaginando como foi para as livrarias de rede. Não preciso nem dizer que os livros esgotaram e ficou inviável repor para atender todos os pedidos. Percebendo o interesse dos consumidores, o grupo editorial Companhia das Letras publicou o livro “Por um Feminismo Afro-Latino Americano” organizado por duas acadêmicas negras, são elas: Flávia Rios e Márcia Lima. Sinceramente? Até hoje eu não entendi porque esse livro não foi feito em conjunto com as pesquisadoras e o coletivo Pan-Africanista que até então era o responsável de manter na tora seus pensamentos circulando no formato de um livro. Pois, bem retiraram do coletivo negro o direito de vender os livros e a edição da Companhia das Letras reinou absoluta em todas as prateleiras das grandes e pequenas livrarias e dos sites de vendas. Foi aí que muitas pessoas, mas muitas mesmo tiveram acesso aos seus escritos que  sempre foram leituras obrigatórias no movimento de mulheres negras, agora estava presente com outra pompa nas universidades e para o público em geral. 

 

 

Em 2020 a Companhia das Letras publicou seus escritos, creio eu que foi muito rentável financeiramente por que resolveram publicar algumas pouquíssimas obras de intelectuais negras brasileiras que anteriormente eles não publicavam de jeito nenhum. A editora foi atrás de nomes conceituados tanto dentro dos ambientes acadêmicos quanto no movimento negro. Pra você ter uma ideia, sabe aquele livro "Tornar-se Negro" da Neusa Santos Souza?  Sim, aquele de 1983. Então, publicaram uma nova edição dele em 2021, 38 anos depois. O livro ficou esgotado por quase quatro décadas. E não para por aí, depois de exatos 20 anos que a Cida Bento havia defendido sua tese de doutorado eles resolveram publicar o “Pacto da Branquitude", isso mesmo? Duas décadas depois, eles publicaram uma tese de 2002 somente em 2022. Já em 2023 eles publicaram a tese da Sueli Carneiro depois de 18 anos defendida. 

 

 

Na mesma proporção que fico feliz com pesquisas e epistemologias tão potentes sendo distribuídas através de livrarias no Brasil inteiro, fico também um tanto quanto desconfiada. Depois de tudo que a branquitude nos privou não dá para confiar. Esse pacto narcísico da branquitude já provou que não faz nada que seja para nos beneficiar, mesmo quando eles saem beneficiados. A questão é, sua obra abriu as portas para outras poucas nessa editora, mas é fato, abriu. Como essa editora dita tendências no mercado que atua, algumas editoras também se atentaram a outras intelectuais negras e conseguimos subir um degrau em publicações e visibilidade. Essa visibilidade que a publicação da sua obra alcançou trouxe muitos retornos positivos, mas de um tempinho pra cá algumas coisas não estão legais. 


Se você estiver de pé, senta aí pra não cair lendo o que vou contar agora. Então, está um maior bafafá entre sua família carnal e a sua família  de santo. No último dia 16/12 um juiz decidiu que seu acervo deveria permanecer lá em Itaguai no Ilê de Oxum Apará. Sim, a sua sobrinha Eliane de Almeida e seu filho Rubens entraram na justiça reivindicando a posse do seu acervo. Pelo que eu entendi a Eliane doou seu acervo para o Ilê e já faz 29 anos que ele está lá. Nessa primeira instância, o juiz concordou com a defesa do Ilê mas ressaltou que sua família carnal deve sim ter acesso à documentação para produção de memórias e pesquisas.  

 

 

Está uma lavação de roupa suja em público via redes sociais que é realmente lamentável.  No Instagram do Instituto Lélia Gonzalez está escrito que, caso sua família carnal vença o processo, parte do acervo poderá ser doado à FGV, de modo a proporcionar maior acesso à obra e recebendo tratamento material específico para conservação, catalogação…”  Mas eu vou te falar uma coisa, viu? Só de pensar no seu acervo sendo gerido por uma entidade chamada Getúlio Vargas, onde quem manda e desmanda lá são homens brancos que não tem nenhum apreço pelo nosso povo, eu sinto vontade de chorar. Mas para falar bem a verdade, fica óbvio que nessa história não há certos e errados. O que acontece mesmo é que  a gente perde coletivamente, porque você já é patrimônio público da negrada brasileira. Algo que poderia ser resolvido com algumas boas horas de conversa a gente acaba por deixar para o sistema de justiça branco comprovadamente racista decidir quem tem ou não direito em um acervo de uma mulher preta. O sistema capitalista e acadêmico nos engolem, nos transformam em produtos e objetos de estudos, nos divide de uma tal forma que coletivamente  caímos na armadilha.  Quando escapamos do epistemícidio caímos nas garras do capitalismo racista excludente e cruel.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia

 

Acho que depois de tudo que contei aqui deve ter entendido porque procrastinei tanto para escrever. Mesmo sendo a data do seu aniversário não poderia jamais escrever uma carta contando a história pela metade. Saiba que sua história, seu legado intelectual continua muito vivo e nos tornando potentes para continuarmos enfrentado as violências racistas, sexistas e de classe que insistem em nos perseguir. Mais uma vez obrigada por tudo, um feliz aniversário e parabéns por ter feito tantas coisas maravilhosas. 

 

Vou ficando por aqui, um beijo!

 

Assinado: Etiene Martins 

 

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay