Antes de ler esse artigo eu peço que, por gentileza, volte na foto e repare bem o rosto que ilustra o artigo dessa semana. Se atenha a cada detalhe, cada traço fenotípico, as texturas, as cores e só então dê continuidade a essa leitura. Pode voltar na foto com calma, sem problemas, eu aguardo.

 

Então, certa vez eu li que o rosto é privilégio do ser humano. Faz sentido, já que o valor atribuído ao rosto na nossa sociedade está muito bem ilustrado pela foto na nossa carteira de identidade, o popular RG. Identidade, aquele documento que carregamos conosco para provarmos perante a lei nosso bom comportamento, onde reuni o nome, filiação, a digital e a foto do rosto. Muito antes dessa era de reconhecimento facial digital que leva vários dos nossos a serem presos equivocadamente, o rosto, por si só, já era suficiente para confirmar a identidade. O rosto traduz sobre forma viva e enigmática o caráter absoluto de uma diferença, apesar de ser ínfima e individual; ele é o lugar originário em que a existência do ser humano adquire sentido.

 

Uma das violências simbólicas implementadas pelo sistema racista consiste em negar o rosto do “outro" atribuindo a nós o "outro" uma fuça, uma cara, um não rosto repetidas vezes nos animalizando. O ódio a nós nos coloca em um lugar de desfiguração e a dignidade de ter um rosto nos é negada, já que o rosto é o lugar mais humano de uma pessoa. Mas qual é a humanidade transmitida por esse rosto que eu pedi para você botar reparo? Me conta o que esse rosto te transmite quando você olha para ele?

 



 

Se esse rosto lhe for familiar, muito provavelmente você irá atrelar a ele um currículo de um dos diretores de cinema mais ricos do mundo. Um homem sensível, que dirigiu e patrocinou o longa-metragem que está fazendo o brasileiro ter orgulho do cinema nacional com a obra “Ainda estou aqui”. Se não lhe era familiar, porque agora eu espero que seja, muito provavelmente você enxergou um senhor da terceira idade, cabelos lisos e grisalhos, magro, branco, de traços finos bem finos perceptivelmente descendente de europeus.

 

Assim como o RG, o sujeito que ilustra essa foto tem nome, sobrenome e ascendência. Quando eu olho para o rosto do Walter Salles Jr eu enxergo a descendência dos que torturaram, estupraram, açoitaram, mantiveram em cárcere os meus ascendentes. A vida inteira eu escutei que por eu ser negra, descendente de africanos eu era descendente de escravos, e ao olhar essa foto encaro um descendente de escravocrata. Um herdeiro direto da desgraça a qual o meu povo foi submetido por 388 anos que elabora minuciosamente uma obra buscando comover o mundo com uma dor que durou 22 anos. Não só busca como consegue fazer com que duas décadas doa mais no imaginário popular do que quase quatro séculos, sabe por que? Porque o rosto de uma parcela que sofreu por duas décadas parece com o rosto dele, tanto é que é a história de rostos parecidos com o dele que ele coloca como protagonistas humanizados em sua obra.

 

 

Mas voltando aos rostos. Eu olho para o rosto bem cuidado dele e vejo nitidamente quantas pessoas com os rostos parecidos com o meu morreram fazendo a travessia de dois oceanos dentro de um navio escuro onde dormiam, acordavam e se alimentavam em meio às fezes, urinas e moscas varejeiras acorrentados uns aos outros durante meses e meses. No fundo dos olhos dele eu enxergo àquelas e aqueles que foram forçados a desistir da vida depois de verem seus filhos serem vendidos como se vende um saco de café no mercado. Eu vejo isso no rosto dele porque ele carrega o sangue de quem legalmente torturou e estuprou mulheres com os rostos parecidos com os meus nas senzalas da casa grande onde elas sequer podiam gritar porque poderiam até escutar, mas ninguém iria salvá-las.

 

Quando eu olho as características desse rosto eu sou obrigada a engolir seco porque ele tem um exército voluntário para defendê-lo. Um voluntariado feroz que segue ignorando o trauma coletivo provocado por quem tem o rosto parecido com o dele nessa imensa parcela da população brasileira que tem o rosto parecido com o meu. Um trauma coletivo que deixa como herança as desigualdades sociais, o genocídio, a necropolítica e o racismo que insistem em nos exterminar. Que quando denunciado é deslegitimado e taxado como mimimi e vitimismo. Uma estratégia antiga e muito eficiente em que o racista deixa de ser quem comete o racismo e passa ser quem o denuncia e fala que ele existe.

 

Pois é, o tempo passa, os anos mudam e as estratégias continuam muito parecidas. Zumbi dos Palmares por se recusar a ser escravizado foi morto e teve sua cabeça exposta em praça pública para que os negros que ousassem sonhar com a liberdade soubesse do que um rosto branco, com traços finos, cabelos lisos é capaz quando desafiado. Rosa e Peregrina as duas últimas pessoas enforcadas na cidade onde eu cresci também eram pretas e foram condenadas à forca porque revidaram os maus tratos da sua senhora branca. A tática hoje é o cancelamento, o ostracismo de quem ousa apontar os rostos dos que herdaram fortunas construídas com a desgraça do meu povo. É por isso que muitas pessoas fingem não ver e não denunciam o fato de que 22 anos da ditadura é tratado como mais doloroso do que 388 anos de escravidão. Fingem não ver por medo de ficarem desempregados, excluídos do mercado de trabalho taxados como essencialistas, identitários ou até como radicais. Mesmo sabendo que radical é o racismo e os efeitos letais que a escravização deixou em corpos como o meu.

 

O interessante é que somos induzidos a nos envergonhar da nossa origem enquanto quem tem os rostos parecidos com o dele queimam os documentos que comprovam o maior crime da humanidade e se exibem orgulhosos de suas fortunas e sucesso mundo afora. Ainda estou aqui mantendo a minha capacidade de indignação. Ainda estou aqui para lembrar do que não tem como esquecer que continuamos desviando da morte precoce de vinte e quatro em vinte e quatro minutos. Ainda estou aqui como muitas iguais a mim na base da pirâmide social estudando e trabalhando e não desistindo depois do centésimo currículo entregue e não aceito por não preencher o requisito de "boa aparência". Ainda estou aqui, assim como minhas mais velhas, cultuando nossos orixás, cantando e gingando a nossa capoeira e o nosso samba de roda.

 

Ainda estou aqui assistindo a primeira geração das famílias negras adentrarem nos cursos universitários, assim como meio milhão de pessoas assistiram a Ana Beatriz Bezerra que viralizou outro dia nas redes sociais ao contar para a mãe Eliene Maria dos Santos, vendedora ambulante que foi aprovada em oitavo lugar em medicina na Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

 

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Pra quem ainda não entendeu, essa não é uma crítica ao filme indicado ao Oscar, até porque não tenho como criticar uma obra que não assisti. Não assisti porque não é justo com meus ancestrais que foram escravizados pelos ascendentes desse diretor que eu colabore conscientemente e voluntariamente com seu lucro. Essa é só uma breve reflexão sobre o tamanho da hipocrisia desse país que idolatra e mantêm o status quo da descendência de um povo que cometeu o maior crime da humanidade. Uma reflexão crítica de quem vê somente o rosto de quem foi escravizado em pinturas e muito pouco de quem escravizou apontando sua característica de escravocrata. Se existiram escravizados também existiram escravocratas e a herança se faz presente para ambos os lados. Pra finalizar essa não é uma carta de cobrança, até porque essa dívida é impagável.

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