No trecho de uma carta escrita a Tania Kaufmann, Clarice Lispector aconselha que “até cortar os defeitos pode ser perigoso, pois nunca se sabe qual deles sustenta nosso edifício inteiro”. Leio e releio essa frase não apenas como um presságio de uma mulher desesperançosa que apoia o cigarro entre os dedos, mas como um verdadeiro dilema ético, fundamental a todo vivente que carrega o peso da consciência e a liberdade de construir a si mesmo.
Desde Aristóteles, sabemos que a diferença entre vício e virtude é apenas uma questão de medida. Em alguns momentos, reagir é sinal de coragem. Em outros, fingir-se de morto é a mais alta sabedoria. A depender do contexto e das infinitas possibilidades de responder às mais variadas situações, cada sujeito decide, no calor da luta, aquilo que mais condiz com sua própria natureza. Para alguns, o pecado. Para o outros, a santidade. Porém, uma coisa é certa: não existe forma ideal para o ser humano e suas ações.
Na opressão contemporânea do que podemos chamar de “engenharia da felicidade”, criamos a idealização de um humano politicamente correto, corporalmente perfeito, espiritualmente elevado e afetivamente realizado. Esse novo humanismo, que coloca na tecnologia seu grande caminho de libertação, acredita em um indivíduo autônomo e livre, inimigo de todo preconceito, higienizado o bastante para não se alimentar do sofrimento alheio, empático diante de toda diferença, educável para o bem, bastando apenas ser corretamente instruído para que ele sinta vontade de construir um mundo melhor.
Esses são reflexos de uma crença perigosa que penetra, silenciosamente, nas escolas, nos departamentos de recursos humanos, nas religiões, na política e, sobremaneira, no debate público. Ignorar que os vícios e as imperfeições constituem a vida de cada sujeito é, também, um jeito de adoecê-lo, de forma lenta e cruel. Afinal, como diz a canção de Edu Lobo e Chico Buarque, “procurando bem, todo mundo tem pereba, marca de bexiga ou vacina. E tem piriri, tem lombriga, tem ameba, só a bailarina que não tem”.
Parece que estamos prestes a construir um universo de “bailarinas”, que estão sempre felizes, amam seus trabalhos, não passam apertos financeiros, não temem doenças e vivem cercadas de pessoas inteligentes, alegres e dispostas a uma vida de aventuras mergulhadas em qualquer mar azul. Basta acessar as redes ou ser obrigado a frequentar alguma palestra motivacional capitaneada por algum guru das terras instagrâmicas que logo percebemos que tem sempre alguém querendo tirar nossos defeitos.
Liberte-se dessa crença tóxica. Não há culpa em ser errante, pois não há caminho anterior a passos que ainda não foram dados. Não fique triste por gostar de carne vermelha e se esbaldar no churrasco com cerveja barata. Calma, é comum rir de piadas sem noção e odiar discussões políticas, principalmente com quem se acha especialista em economia, formas de governo, guerras no Oriente Médio e processos eleitorais. Não há nenhum mal em esquecer de beber água em plena tarde de calor, odiar linhaça e achar comida integral um lixo alimentício.
Não fique se achando estranho por acreditar que a zona de conforto é o melhor lugar do mundo e que a tragédia sempre começa com a frase: eu topei o desafio. Fique tranquilo se você acha meditação um saco e não tolera essa ideia de que devemos sair por aí dispensando gratidão a todo ser que se move pela terra. Não blasfeme contra o prego milimetricamente colocado para segurar a alça de seu chinelo, esse é um hábito que está morrendo em nossos dias, sinal de que você é uma pessoa rara! Sinta-se normal por detestar academia, exercícios físicos e demais atividades primitivas, pois é mesmo impossível ser feliz com o corpo suado. Está tudo certo em não querer acompanhar os trinta milhões de podcasts que circulam freneticamente como indicação em sua roda de amigos e comentar o vencedor do Oscar com um simples “filme legal”.
Talvez o complexo de perfeição seja um dos grandes males contemporâneos, levando milhares de pessoas a adoecimentos de toda ordem e sorte. Ao contrário, a imperfeição sempre foi acompanhada de uma boa dose de humanidade. Por isso, nunca se esqueça de que você não está só! No mínimo, seus defeitos sempre lhe acompanharão. Melhor tratá-los bem.