Fomos catapultados à era digital e é consenso que devemos nos preparar para ela. Mais uma vez, a escola se transforma em alvo, espécie de remédio para as questões sociais. Visão que reduz o espaço formal de educação em um instrumento que deve oferecer respostas imediatas às questões contemporâneas. Triste, mas é verdade.

Para alguns, ela deve caminhar, sem refletir, satisfazendo as demandas apresentadas pelos principais agentes do mercado, sobretudo na época dos bilionários algorítmicos e seus oligopólios virtuais. Para outros – e me incluo neste grupo – a escola é lugar da crítica, o desenvolvimento da autonomia ética e da liberdade científica, elementos fundamentais na vida de uma sociedade que deseja se desenvolver.



Considero, no mínimo estranho, nos autointitularmos como “nativos digitais”, como já demonstrei em outros textos neste mesmo espaço. Ao que me consta, os medievais não se tratavam por essa definição, muito menos os modernos. Todas as classificações sociais vieram por intermédio da geração posterior. Talvez sejamos a única que antecipamos a nossa própria definição, talvez pela nossa ansiedade peculiar ou pela ignorância comum em nosso meio.

Todas as civilizações tiveram seu ponto-cego. Impossível não se deixar seduzir pelo pensamento grego e todas as suas reflexões filosóficas. Ao mesmo tempo, difícil acreditar que tamanha inteligência sustentava práticas escravocratas, um mal moral, político, religioso, social e jurídico. Talvez, naquela época, muitos tenham se atentando para esse ponto, mas foram cancelados, silenciados pela desgraça que é o pensamento de rebanho, a maioria que se acostuma a hábitos, justificativas e preconceitos irrefletidos.

Talvez, em um futuro longínquo, olhem para nós com a mesma pergunta: mas eles acreditavam mesmo que a técnica e a linguagem de programação resolveriam todos os problemas humanos? Seus ambientes formativos eram high tech mas com low ethics?

Como eles autorizaram uma inteligência artificial que destruiu a possibilidade de conhecimento e memória humanos? Suas crianças passavam cinco horas em frente às telas, fazendo dancinhas dentro de um enquadramento? Deixaram a democracia morrer e optaram pela tirania dos algoritmos?

Antes de parecer um cenário catastrófico, pense que, assim com as outras sociedades, também teremos nosso ponto-cego, que só será visto posteriormente.

Até então, por toda herança cultural que temos, só observamos duas formas de enxerga-lo (pois, do contrário, não seria um ponto cego, não é?): ou nasce um gênio, capaz de colocar o dedo na ferida e apontar o caminho errado que estamos tomando – como foi Sócrates, condenado à morte em Atenas, ou nos dedicamos às coisas humanas, como literatura, filosofia, história, sociologia, arte e teologia, pois uma civilização não se faz apenas com postes e energia elétrica – aliás, isso parece, inclusive, que está colocando em risco a vida humana. Infelizmente, muitas escolas parecem que não estão dispostas por uma coisa, nem outra.

Com uma simples visada sob o cenário educacional brasileiro, notamos que muitos ambientes formativos entendem a “educação digital” como uma espécie de laboratório disposto a formar novos consumidores ao mercado de suportes digitais, smartphones, gadgets, aplicativos e demais botões coloridos que não nos farão seres humanos melhores. Enquanto compramos novos computadores e entramos em êxtase religioso quando vemos uma sala toda conectada em universos paralelos, nossos jovens continuam manipulando imagens de seus colegas, praticando cyberbullying, acessando tutoriais para automutilação e desejando desafios que podem levar ao autoextermínio.

Estamos preocupados com a formação das crianças e jovens que nos são confiados, pela sociedade, ou apenas atendendo à demanda de novos consumidores digitais? Enquanto nos atolamos em Fake News, desvalorização da ciência, risco iminente de um colapso ambiental, incentivamos nossos estudantes a entrar no ciclo dos produtos com obsolescência planejada, consumindo coisas que não durarão mais que seis meses e deverão ser trocadas instantemente, aprendendo a fazer o mesmo com as relações sociais.

No futuro, é possível que tenhamos várias clínicas específicas para os viciados digitais. Estudantes que, fora da escola, já gastam tempo inapropriado frente às telas azuis, quando chegam em seus centros formativos, lugares que deveriam servir para um alargamento de mundo, são mergulhados, ainda mais, em ambientes digitais que os algemam a uma dependência que, na verdade, as instituições pedagógicas deveriam combater.

Na verdade, ninguém precisa mais ensinar a uma criança a importância e as formas de acessar o mundo digital. Faça o teste. Coloque um celular ou tablet na mão de um jovem estudante e percebe se, intuitivamente, ele já não sai por aí, se conectando a tudo e a todos, de joguinhos a vídeos non sense, expostos às dependências das mais variadas formas e às exposições pessoais, tanto de cunho vexatório quanto sexual.

Diante disso, precisamos urgentemente de uma formação digital, mas não aquela praticada pelos agentes das Big Techs. Necessitamos de educadores que proponham a desintoxicação virtual, que auxiliem nossos estudantes a um uso racional e ético e todas as possibilidades positivas que o domínio técnico pode nos oferecer. Um aplicativo não é capaz de mudar uma vida, uma boa aula sim.

compartilhe