Homem sobe escada em direção ao céu, imagem ilustrativa de uma pessoa se despedindo da vida -  (crédito: Pixabay)

Homem sobe escada em direção ao céu, imagem ilustrativa de uma pessoa se despedindo da vida

crédito: Pixabay

A finitude sempre foi uma questão fundamental para a filosofia. Caso fôssemos imortais, filosofar não seria uma atitude inerente à condição humana. Por que perdoar? Se teríamos todo o tempo do mundo para reatar os laços? Qual a importância de se preocupar com escolhas certeiras, se não teríamos o receio de envelhecer e perceber que decidimos pelo caminho errado? Todas as escolhas estão intimamente ligadas ao sentido de que o tempo passa e nos cobra de nós a aposta que fizemos. Filosofamos porque somos mortais.

Por isso que a morte é um dos temas centrais da filosofia. A lembrança de Caronte e seu barco, nos aguardando para a viagem derradeira, faz da aventura existencial uma encenação sem roteiro e sem ensaio, na qual todas as decisões assumem o ar dramático das vidas possíveis, escolhidas e deixadas de lado.

Lógico que a filosofia não é uma garantia de vida feliz. Porém, ela pode nos afastar de uma existência irrefletida, repleta de escolhas malfeitas. Sócrates já avisava: cuidado com o vazio de uma vida ocupada demais! Uma vida sem reflexão não merece ser vivida. Caso fôssemos deuses, as escolhas não seriam um problema para nós. Já saberíamos tudo e teríamos sempre a melhor decisão. Não nos faltaria nada, por isso, também, não buscaríamos coisa alguma.

Porém, ao contrário dos deuses, somos falíveis, mortais e errantes, nos deparando com as condições impostas pelo mundo, que aguarda nossa resposta vital, na tentativa de caminhar com menos sofrimento e um pouco mais de alegria. Do ato de desligar os aparelhos de um ente querido à decisão de ter um filho, a incerteza da existência humana reveste a vida com uma aura de dramaticidade e beleza. Se já soubéssemos de tudo, não necessitaríamos da esperança; se não precisássemos de ninguém, o amor seria inútil.

Sêneca decidiu morrer de forma serena, mesmo sendo acusado de uma conspiração contra Nero, do qual foi mestre e tutor. Sócrates, ao tomar seu cálice de cicuta, afirmou diante de seus alunos que a morte não é o fim e que é preferível morrer dignamente a viver injustamente, frente a uma democracia ateniense corrompida, insegura e corrupta. Giordano Bruno, mesmo nas mãos da inquisição, morreu fiel às suas convicções teológicas. Boécio escreveu uma das obras mais belas da literatura filosófica, “As Consolações da Filosofia”. Foi elaborada sob torturas terríveis e inimagináveis, enquanto o autor imaginava a Sabedoria visitando sua masmorra e o relembrando de todos os ensinamentos perpassados durante sua juventude.

Outro dia, no boteco do Chicão, lugar onde reafirmamos a elegância de existir, entre bifes acebolados e cervejas geladas, em meio a discussões acaloradas sobre a necessidade de o futebol brasileiro retomar a utilização de pontas e centroavantes de ofício, o tema da morte surgiu na notícia de um parente de algum amigo da pelada de domingo, que teria feito sua travessia no estádio, assistindo ao jogo de seu time de coração. Pronto. As condições de gravidade e temperatura estavam postas para mais meia caixa de gelada e a possibilidade de filosofar sobre a melhor forma de morrer (ou seria de viver?).

A palavra rodou e cada um tinha em mente sua forma de valorizar a vida escolhida com uma morte digna. De boate de striptease à pescaria no meio do Pantanal, cada um havia descrito o melhor jeito de partir, experiência única e intransferível que a natureza nos presentou. Sim. Os outros animais também morrem. No entanto, somente o ser humano tem consciência antecipada de sua mortalidade, e isso faz toda a diferença (nunca vi gatos bebendo e discutindo sobre isso).

Quando a palavra foi franqueada à minha participação, sacramentei: - quero morrer como meu avô, Seu Adelvino. Lógico que a curiosidade reinou. – Como? Perguntaram. Respondi: - muito velho e sem nenhuma lucidez.

Isso mesmo. Acho uma sacanagem morrer aos poucos, envelhecendo e tendo a consciência da própria decrepitude. Vovô partiu próximo dos cem anos. Na verdade, acho que nem precisa disso tudo, porém, se for para ser assim, o melhor mesmo é ir doidão, alucinando, sem nenhuma ideia de seu próprio corpo e as limitações que o tempo imprimirá em nós. Aliás, acho essa a única sacanagem de Cervantes. Quixote recobrar a consciência, pouco tempo antes de morrer, é uma crueldade sem fim. Deixasse-o partir sonhando com sua Dulcineia e as batalhas intermináveis com seus Dragões.

Meu avô, nos últimos anos, dormia durante o dia e, quando chegava à noite, tocava seus bois imaginários, contava o dinheiro de sua aposentadoria e fazia planos de aumentar a plantação de milho, sussurrava o nome de seus amores e ainda encontrava tempo de jogar um bom truco na venda do Zé, de onde saia com a alegria etílica de quem sabia viver bem. Minha tia, ao contrário do que preconizaria a medicina, autorizava seus delírios, negando qualquer medicação que o tirasse desse prazer. Lógico que isso acarretava noites mal dormidas e dias com muito cansaço. Porém, garantia a dignidade de um homem que iria partir na elegância daqueles que escolheram viver bem.

Em meio a tantas receitas de longevidade, aplicativos que controlam dietas, coachings e moralistas alimentares, é possível que tenhamos mais tempo de vida do que nossos antepassados. Entretanto, para além dos silicones, viagras, implantes, preenchimentos labiais e demais formas de cosplay de juventude, é preciso entender que não é fácil partir.

De minha parte, filosoficamente rezando, só peço a Deus uma vida longa! Pois amo existir e compartilhar a vida com aqueles que caminham comigo. Todavia, peço que não me deixe partir com essa lucidez autoritária de nosso tempo, que estica os corpos mas encolhe as almas.