Cartunista no ABZ do Ziraldo, programa da TV Brasil  -  (crédito: TV Brasil/Divulgação)

Cartunista no ABZ do Ziraldo, programa da TV Brasil

crédito: TV Brasil/Divulgação

É lógico que Ziraldo fará falta. Com ele, encerramos um ciclo de infância na rua, panela na cabeça, filme na escola, bola no paralelepípedo, dedão com tampão arrancado e pipa no alto do céu. De agora em diante, sem saudosismo barato, só espero que o Maluquinho seja nossa bandeira de luta.

 


Enquanto alguns discutem Bell Hooks e outros ainda esperam um milagre de São Marx, devemos mesmo é acreditar na Filosofia do Menino, infante e resistente, dando trabalho para Dona Naná e esquentando a cabeça de Sô Carlinhos, pois o mundo adulto sempre pode esperar. Ziraldo era mesmo um visionário. Não me lembro de algo tão decolonial quanto a turma do Pererê.

 


Fico aqui pensando... O Menino Maluquinho não seria tolerado nas escolas de hoje. Não apenas nos espaços de educação formal, mas, principalmente, dentro das famílias. Cansados, exaustos de tanto se dedicarem à carreira, seus pais iam acabar levando-o ao pediatra. Aliás, (inocência minha!) ao neuropediatra – muito mais na moda e bem mais chique.

 


Após uma consulta de valor altíssimo - indicado pelas mães no grupo de WhatsApp da escola - Dona Naná ia levá-lo para ser testado, examinado e sojigado, tal qual o ratinho do Skinner. Com certeza, encontrariam algum diagnóstico bem atual, chancelado por algum parâmetro norte americano, traduzido em algum transtorno da moda, classificado por alguma sequência de letrinhas.

 

Afinal, ser criança, dá muito trabalho hoje em dia. Melhor mesmo é ter um cachorro com nome tibetano. O mundo adulto, corporativo, normal e normatizador, não tem muito tempo para gastar com assessment infantil, pois isso não gera network e não produz background para um branding pessoal.

 


Carlinhos, construindo sua carreira, talvez fosse convencido de que família tranquila + escola satisfeita = criança medicada. Esse negócio de viver por aí com panela na cabeça, macacão azul maior que o corpo, desafiando regras e fazendo traquinagens só pode ser algum transtorno! É preciso adequá-lo, adestrá-lo, reabilitá-lo.


- Dona Naná, pode ficar tranquila... Todo mundo tem algum registro no DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. Esse documento, criado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA), padroniza critérios diagnósticos das desordens que afetam a mente e as emoções. Para cada panela, sua tampa. É lógico que, com o diagnóstico, também criamos um bom remédio para seu filho. A indústria farmacêutica já cuidou de tudo.


Fique em paz, Dona Naná. Amenize um pouco sua culpa materna. O fato de ele ser “levado” é apenas uma manifestação orgânica de seu corpinho, não tem nenhuma relação com a senhora ou com as coisas que vocês vivem em casa. Durma tranquilamente. Aliás, também temos um indutor de sono, caso a senhora precise. Cremos que isso lhe fará muito bem.

 


Tenho absoluta certeza de que o mundo contemporâneo não favorecerá o surgimento de novos Maluquinhos. Triste, mas quando eles tentam colocar o nariz para fora, cortamos sua criatividade, os tornando dóceis no divã farmacêutico, mais eficiente que os manicômios de Barbacena. A infância, com toda sua potencialidade, incomoda muita gente.


Ainda bem que Ziraldo decidiu não medicar seu Menino Maluquinho. Nele, fomos perdoados, renovados, resgatados e nos sentimos, até hoje, representados. Com ele, temos a certeza de uma vida leve e feliz, mesmo com os joelhos ralados de tanta hiperatividade.