Dentre as muitas coisas que aprendi com Albert Camus, a mais valiosa foi a possibilidade de salvar o cotidiano -  (crédito: Nanda Ferreira/Divulgação))

Dentre as muitas coisas que aprendi com Albert Camus, a mais valiosa foi a possibilidade de salvar o cotidiano

crédito: Nanda Ferreira/Divulgação)

Hoje, fui capaz de sentir aquele grande prazer que se esconde em um cachorro-quente na praça vazia da cidade. Dia de feriado, igreja apagada, os meninos correndo em um pega-pega combativo e a vida, sem carências, rodeando a todos. Durante o Sermão da Montanha, no meio das outras bem-aventuranças, acredito que poderia ter sido incluído: felizes o que salvam o cotidiano, pois deles será o Reino da Terra!

 

 

Dentre as muitas coisas que aprendi com Albert Camus, a mais valiosa foi a possibilidade de salvar o cotidiano. Se viemos do nada e para lá retornaremos, temos a única missão de carregar nossa subjetividade por aí, sem necessidades de adequações, medicações ou castigos. Mesmo diante da pedra de Sísifo que teima em descer todas as manhãs, nos obrigando a recolocá-la em seu lugar para, depois, ir buscá-la novamente.

 

 

 

Longe das ilusões políticas, das profecias transcendentes ou das promessas ideológicas, chega uma hora que entendemos a necessidade de olhar a vida de frente, conquistando-a, na tentativa de que se transforme em velha amiga.

 

 

O absurdo que nos rodeia oferece, como presente, sua terna indiferença, libertando-nos de qualquer missão prévia, vocação, destino ou obrigação com a ordem do mundo. Só o cotidiano se mostra como portador de propósitos, grávido de um sentido que se renova diante de cada momento vivido. Mesmo em um trabalho extenuante, é preciso imaginar Sísifo feliz. A pedra é, também, sua imortalidade, sua conquista suprema.

 

 

A cobrança contemporânea de uma vida instagramável ordena que toda existência seja reprodutível, na ânsia de que o viver seja um evento espetacular, nos colocando como meros espectadores dos outros. O projeto de uma vida digital, no final das contas, consiste em nos afastar das belezas cotidianas, pois, como são gratuitas, não contribuem para fazer a “roda girar”. Depois do “trabalhe enquanto eles dormem” chegou a hora do “fotografe e consuma enquanto eles vivem”.

 

 

O sujeito, de gosto massificado e homogeneizado, acelera seu tempo como se estivesse a serviço de uma divindade cruel, que fuxica sua privacidade enquanto oferece a sensação da escada rolante: corra! Corra! E fique preso ao mesmo lugar. O motor da competição é atualizado a cada clique, criando a ideia de que o indivíduo está sempre em falta, na culpa de ainda não ter experimentado todas as outras coisas que as cinco mil pessoas estão fazendo em sua Rede Social.

 

 

Salvar o cotidiano talvez seja o imperativo mais urgente diante desses tempos mortos, que tentam nos furtar a beleza da experiência vital. A cerveja com os amigos, o mistério do fogo que, desde nossos antepassados, garantem a vida em sociedade e o churrasco de domingo, a conversa fiada no bar, o grito de gol nos estádios, as roupas penduradas no varal, o medo da criança diante do trovão e a sorte de passar as noites ao lado de um amor... Tudo isso deveria nos lembrar que a vida é uma grande experiência estética e nada mais.

 

 

Todas as quinquilharias da Revolução Treconológica tentam nos afastar do cotidiano, pois os gurus dessa nova era sabem que é muito difícil enganar um sujeito feliz, satisfeito com a vida ordinária. Gente contentada não acredita que sacola cheia é cura para vazio existencial.

 

 

Não há segredo na filosofia de Albert Camus, muito menos cinco lições para qualquer coisa. Há apenas a pergunta inquietante: quem é capaz de entristecer aquele que encontra felicidade em seu cotidiano?