Impossível parar de pensar que neste domingo, dia do Senhor, acontece o encontro entre Silvio Santos e Zé Celso em algum lugar da vastidão, continuando a contenda do Teatro Oficina, que agora extrapola o espaço físico e alcança a eternidade dos mestres do tempo.
De um lado, Zé. Cercado pelos seus advogados: Dionísio, Zeus, Eros e Tânatos, fazendo uma cerimônia essencial às artes livres, à vida estética e pulsional, cultuando vinhos e corpos, leveza e delícias de uma arte que representa a própria vida cheia de lutos e alegrias, idas e vindas.
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Do outro, Silvio, cercado por comunicadores de primeira estirpe. Davi, Isaias, Paulo, Mateus, Lucas e João. Mestres que seguiam parábolas e conheciam da arte de reunir o povo, congregados da linguagem, utilizando praças e cartas para fazer chegar sua mensagem a quem quisesse ouvir.
Antes que os mais desavisados pensem que se trata de um duelo entre o bem e o mal, é preciso avisar: aqui se trata de uma contenda entre o belo e o belo, encontro de excentricidades sob o som sublime das harpas angelicais. Entre eles, não há inimizades, mas apenas o gozo de cear ao som das cítaras, entre olimpianos e a tradição judaico-cristã. Esse negócio de ficar discutindo abertura das Olimpíadas e a relação com a Santa Ceia é só para pobres mortais.
Estou muito preso à vida e confesso que não queria estar lá para ver. No entanto, é gostoso ficar imaginando o Zé Celso se esbaldando, em performance dionisíaca, exaltando o legado das Bacantes, frente à tarefa lógica da linguagem e da comunicação. Do outro lado, o Senhor Abravanel jogando aviõezinhos para a população celestial, fortalecendo a ideia de que não é preciso morrer para ter prazeres e bons sonhos.
Deve ser isso que os professores de matemática sempre tentaram me ensinar: duas retas paralelas irão se encontrar no infinito.
É possível afirmar que sinto uma espécie de luto neste domingo, como se tivesse que despedir de um parente distante, mas próximo. Aliás, não é errado acreditar que o Silvio era meio parente de todo mundo. Por mais que não tenha incorporado a cultura da televisão dominical em minha casa, é claro que levo essa imagem e esse som em minha memória efetiva.
Enquanto alguns sentiam depressão com a abertura do Fantástico, aos domingos eu sentia o gosto da comida típica, apelidada afetivamente de “Silvio Santos”: tutu, macarrão, arroz, salada e frango. Era o óbvio e comum transformado em extraordinário. Assim como era a pergunta mais básica de todas, retórica, mas que movia multidões: - quem quer dinheiro?
Era cultura de massa, era alienação, era o momento em que o trabalhador se sentia participante de um mundo no qual ele nunca ia fazer diferença? Sim. Era tudo isso. Mas também era a possibilidade de reunir a família, de ver o pai sorrir com as trapalhadas de uma câmera escondida e da mãe deixar escorrer uma lágrima com histórias do povo e com uma porta que se abria à esperança.
No fundo, era essa salada cordial, essa mistura de arte e consumo, de fantasia e realidade, de vida e história, de riso e choro, aquilo que faz de nós um povo brasileiro.