Aqui em casa ocorre um fenômeno quase científico. Ao primeiro sinal de chuva, os meninos vestem o uniforme de futebol mais limpo e se apresentam prontos, como se fossem convocados para a Seleção. Parece até final de Copa do Mundo. Na minha infância, a chuva também causava correria — mas por motivos bem menos heroicos. Era para fechar janelas, salvar roupas no varal e, claro, espalhar bacias pela casa, pois as goteiras eram mais certeiras que mísseis teleguiados de São Pedro.
Minha mãe, na janela, não perdia tempo: começava a rezar para São Jerônimo e Santa Bárbara, seus santos de confiança para conter tempestades, como se fossem super-heróis com capas e raios. Bastava um relâmpago, e lá vinha ela com o terço, entoando suas preces, uma espécie de mantra particular onde eu só entendia o “amém” no final de cada verso. Se ainda estivesse por aqui, ela certamente condenaria essa alegria que reina hoje em casa. Diria que é irresponsabilidade de um pai que ensinou aos filhos que chuva boa é aquela que se sente no quintal, e não debaixo do telhado.
Desde pequenos, meus filhos já aprendiam comigo: na primeira gota d'água, eu os pegava no colo e não deixava a oportunidade passar. Esse líquido misterioso que vem do céu nunca teve nada de ameaçador para mim. Pelo contrário, sempre o vi como purificador, renovador, uma espécie de fonte da juventude que não depende de Botox, mas de sabedoria e de se sujar na lama de vez em quando.
Fico aqui imaginando como explicaria isso para Dona Maria, minha mãe. Como convencer que a chuva não é vilã e nem culpada por gripes, já que o “bichinho” responsável é um vírus, uma coisinha microscópica? Mesmo assim, ela com certeza continuaria me chamando de irresponsável e descrente. O que, convenhamos, já soa como um elogio a essa altura. Um a zero para o Édipo!
A verdade é que sinto um orgulho quase filosófico dessa euforia dos meus filhos ao ver a chuva cair. Como disse Epicuro, o medo é apenas uma ideia. Não são os eventos que nos fazem sofrer, mas o que pensamos sobre eles. A felicidade, para ele, é manter uma alma tranquila, longe de desejos desnecessários e medos imaginários. Afinal, “nada é suficiente para quem o suficiente é pouco”.
Epicuro, aliás, é meu herói intelectual. Enquanto o pessoal de Atenas vivia no burburinho, ele decidiu se afastar, fundar o Jardim, sua escola filosófica, e viver entre amigos, cultivando a terra e a mente. Sem ostentação, sem ambição, só com simplicidade e boas conversas. Ali, longe das preocupações políticas e dos conflitos sociais da cidade, ele buscava um estilo de vida simples, dedicado à filosofia, à convivência e ao cultivo da terra. Essa decisão refletia seu ideal de vida tranquila, baseada no prazer moderado e na autossuficiência. Para ele, a verdadeira felicidade não estava na agitação das riquezas ou na ambição, mas na simplicidade, na amizade e na reflexão sobre as questões essenciais da vida, em harmonia com a natureza.
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E então, ao primeiro sinal de chuva, lá vão os epicuristas aqui de casa: trocam o medo pela lama, as ideias pelas sensações, os excessos pelas simplicidades. Curioso como ainda nos relacionamos com a natureza de forma utilitária. Eu, como qualquer mortal que lê sobre emergência climática, espero a chuva pensando nas plantações, na queda do preço da carne, no etanol mais barato, na energia elétrica que vai baixar. Enquanto isso, meus filhos só querem sujar o uniforme de lama, rir de boca aberta e reviver a esquecida “pelada do dilúvio”.
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De todos os ensinamentos, acho que esse é o mais importante: experimentar, sem medo, a chuva. Não sei quais desafios a vida vai apresentar para eles — se vão criar uma startup, entrar para a política, fazer concurso ou competir por uma vaga contra a Inteligência Artificial. Mas de uma coisa eu tenho certeza: ninguém consegue entristecer quem aprendeu a ser feliz tomando banho de chuva. Salve, Epicuro!