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Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

A destruição do cotidiano: burnout, depressão e trabalho

A cada notificação de celular, reunião online ou entrega por aplicativo, nossa casa é invadida por uma máquina de produção que despreza nossas horas de descanso

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Ulisses, o astuto herói da Odisseia de Homero, manteve ao longo de sua vida um grande desejo: retornar a Ítaca. E quem pode culpá-lo? Desde o início, ele nunca quis sair de lá. Quando foi convocado pelos reis gregos para a guerra de Troia, sabia que aquele conflito não era seu. Troia não era seu problema, muito menos Helena. Menelau que resolvesse seu drama conjugal de outra forma — quem sabe com terapia? Mas não. O rei traído decidiu transformar sua desventura amorosa em uma crise de segurança nacional.

 


Ulisses tentou se esquivar: fingiu-se de louco, sumiu por um tempo, fez tudo para evitar o “convite”. Mas ameaçaram seu filho, Telêmaco. Aí não teve jeito: partiu para lutar uma guerra que não era sua, como tantos de nós fazemos todos os dias. Venceu, claro. Inventou o Cavalo de Troia, garantiu a vitória grega e saiu vivo de uma guerra que engoliu heróis como Aquiles e Heitor. Sobreviveu porque carregava algo mais forte do que o desejo de glória: o sonho de voltar para casa.

 


Mas o retorno foi outra epopeia. Irritar Poseidon é como discutir com o chefe numa segunda-feira: você pode estar certo, mas será punido mesmo assim. Ulisses viu sua viagem de volta transformar-se em um pesadelo logístico digno de uma agência de turismo mitológica incompetente. Dez anos vagando pelos mares! Um verdadeiro funcionário preso no trânsito cósmico da vida.

 

Resiliência é a bobagem do capitalismo coaching


Será que foi só azar? Talvez Ulisses, inconscientemente, temesse o retorno. Afinal, o lar idealizado como refúgio perfeito também é palco das pendências mal resolvidas: uma esposa esperando há duas décadas, um filho que cresceu sem o pai e uma casa tomada por pretendentes folgados — a versão homérica dos boletos atrasados e das visitas inesperadas no domingo à tarde.

 


É que o retorno não é apenas geográfico; é existencial. O lar não é só um endereço, mas uma ideia: o lugar onde nos despimos das máscaras que usamos no mundo. O próprio Ulisses, mestre do disfarce, só encontra paz quando se revela a Penélope. Voltamos para casa não para sermos heróis, mas para sermos nós mesmos — com todas as nossas fragilidades, vícios e esperanças.


No fundo, Ítaca não é um ponto final. É o recomeço do cotidiano. A jornada é longa porque precisamos amadurecer para merecer o retorno. E Ulisses, mais do que herói, era um sobrevivente da grande guerra do existir — o que, convenhamos, já é uma façanha digna dos deuses.


Em um mundo onde a grande meta de vida é “morar mais perto do trabalho”, matamos a travessia que nos faz partir com o desejo de retornar. Desde cedo, aprendemos que devemos nos distanciar de tudo que reduz nosso espírito. Sair de casa e vestir a armadura para lutar em Troia; retornar e despir essa armadura em cada esquina da cidade. Um gesto silencioso de resistência contra o mundo competitivo, vazio e artificial.


O retorno à casa, esse gesto tão simples e tão profundo, tornou-se quase revolucionário. Há uma beleza particular no cotidiano: o cheiro do café fresco, a toalha secando ao sol, o barulho da chuva no telhado. É o extraordinário disfarçado de trivial. Mas, no capitalismo tardio, o cotidiano virou um campo de batalha invisível. A cada notificação de celular, reunião online ou entrega por aplicativo, nossa casa é invadida por uma máquina de produção insaciável que despreza portas fechadas e horas de descanso.

 


A destruição do cotidiano não é um acidente; é uma estratégia. A lógica do mercado precisa de indivíduos sempre disponíveis, sempre deslocados — sem casa, sem raízes, sem pausa. O “lar” tornou-se um ponto de acesso à internet, um espaço utilitário onde se trabalha, consome e se descansa o suficiente para produzir mais. A velha imagem do descanso ao pé da lareira foi substituída pelo home office eterno, onde até a pausa para o café vira momento de produtividade.

 

 

Retornar à casa é mais do que voltar a um lugar físico. É reivindicar um espaço onde a vida não seja monetizada, onde possamos existir sem pressa, sem filtros, sem a obsessão pela eficiência. A casa deve ser um reduto de humanidade, um abrigo contra o deserto tecnocrático que nos cerca. Retornar não é apenas chegar; é resistir ao desamparo planejado por um sistema que nos quer eternamente nômades, sempre em busca, mas nunca encontrando.

 


Falamos de Utopia, a esperança de construir um lugar que, mesmo inexistente, pudesse inspirar um mundo melhor. Depois veio a Distopia, a visão de uma sociedade opressiva, desumana e controladora. Mas, no capitalismo tardio, experimentamos a Atopia: uma sociedade sem lugar, onde corpos nunca retornam ao lar, e, quando voltam, encontram espaços tão reduzidos que são obrigados a sair novamente.

 

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Nesse cenário, parece que o retorno à casa se junto ao reina das siglas corporativas, que emergem como uma língua secreta dos eleitos. O mundo empresarial transforma “KPIs”, “ROI” e “B2B” em mantras sagrados que garantem a ascensão ao Olimpo dos executivos iluminados. Afinal, por que dizer “estratégia de expansão de mercado” quando se pode dizer “PLM no pipeline”? Siglas: transformando o banal em genial desde sempre — ou, como diriam nas empresas, “otimizando o workflow sinérgico”.


Ulisses lutou contra deuses e monstros para voltar à sua Ítaca. Hoje, nossos monstros são algoritmos insaciáveis e jornadas de trabalho sem fim. Voltar para casa é, portanto, um ato de coragem, uma afirmação teimosa de que somos mais do que peças de uma engrenagem. Mais do que siglas reducionistas que esvaziam a vida. É relembrar que, no fim de toda jornada, o que buscamos é algo simples: um lugar onde possamos simplesmente ser.

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