Era uma vez um ser humano. Tinha sonhos, desejos e uma vaga esperança de encontrar sentido na vida. Veio, então, a modernidade, com sua obsessão por produtividade, e sussurrou docemente: “Que tal transformar sua existência em um grande projeto de carreira?”. O resto é história, ou melhor, um currículo em constante atualização.

 

 

Se você não sabe quando a carreira passou a ser o grande objetivo de vida, provavelmente já está preso na roda viva das metas corporativas. A cultura do “trabalhe enquanto eles dormem” se instalou com tanto fervor que Nietzsche, do além, deve estar se perguntando: eles chamam de “Super-Homem” um workaholic?

 

 

Tudo começou quando o verbo “ser” foi demitido e substituído pelo verbo “ter”. Não basta mais ser uma pessoa interessante; é preciso ser um “profissional apaixonado”. Não basta gostar do que faz; é imperativo “respirar seu propósito”. A autenticidade virou moeda de troca, vendida em embalagens recicláveis nos posts motivacionais das redes.

 

 

Os mais sensíveis dizem que o momento exato da virada foi quando a palavra “carreira” deixou de ser uma trilha para virar uma montanha russa emocional, com loopings de ansiedade e quedas de autoestima. Alguém deveria ter avisado que o cume é solitário e não aceita pagamento em horas extras. No final de tudo, restará a dúvida se você conseguiu, ao longo de toda sua história, acumular, pelo menos, seis mãos para carregar seu peso corporal na última viagem.

 

Será que a felicidade foi terceirizada para o sucesso profissional? Quando o “eu” genuíno foi engavetado para dar lugar a uma versão mais apresentável, ajustada ao mercado? Afinal, sorria: você está sendo avaliado! Hoje, a alma humana deve ter o tamanho de um dashboard, medida por relatórios de desempenho. Amor, amizade e poesia foram promovidos a hobbies, devidamente praticados em intervalos entre reuniões intermináveis. O verdadeiro crime existencial moderno não é a morte, mas a ausência de um plano de carreira claro.

 



 

Aristóteles, se vivesse hoje, talvez refletisse acerca da “vida boa” confundida com a busca pelo “job dos sonhos”. Sócrates, em vez de perguntar “Quem sou eu?”, indagaria: “Qual sua última certificação?”. E Platão talvez visse o mundo corporativo como a caverna definitiva, onde todos só enxergam as sombras das metas inalcançáveis.

 

 

No fim das contas, talvez a grande revolução seja redescobrir a existência em meio aos relatórios, lembrando que a vida, ao contrário de um currículo, não precisa ser impecável — só ser vivida.

 

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No grande balanço existencial, o verdadeiro sucesso pode ser algo que nunca caberá em um relatório no formato PDF nem será medido por metas alcançadas ou gráficos de desempenho. A vida que nos surpreende está fora da agenda! Ela se deixa encontrar, descuidadamente, nos cafés sem pressa, no cheiro da cama em pleno domingo, na voz de uma criança dizendo pai/mãe como forma de afastar o medo, nas conversas que não geram networking, nas músicas compartilhadas com gente que frequenta a nossa cozinha, no beijo que sela o grande amor da sua vida...

 

O saldo que importa nunca estará em planilhas, mas nas memórias que sobrevivem na vida além do trabalho.

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