Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

O mal gosto é democrático

A verdade é que bom gosto dá trabalho. Mal gosto é um atalho para a felicidade

Publicidade

Boteco do Chicão. Lugar de encontro da Cátedra Etílica de Filosofia aplicada. Academia Brasileira de Copos e Letras. O refúgio dos grandes debates filosóficos, onde o álcool substitui a dialética e o torresmo faz às vezes da maiêutica socrática.


Lá estávamos nós, eu, Nicotina e Careca, três luminares do pensamento contemporâneo, prontos para resolver mais um dos dilemas da humanidade: por que o mal gosto é tão democrático?


— Ninguém faz amizade, em uma mesa de bar, ouvindo essa porcaria de “Descer para BC” — soltei, dando o pontapé inicial.

— E muito menos com tecnobrega e piseiro — reforçou Nicotina, riscando números suspeitos num papelzinho amassado.


— Agora, coloca um Chico Buarque pra tocar, e pronto: uma roda de desconhecidos já começa a discutir comunismo, crise existencial e o exato momento em que o Brasil deu errado — completou Careca, um homem que acreditava que toda resposta podia ser encontrada numa boa pelada de domingo.


Nicotina deu um gole no seu conhaque barato, olhou ao redor e decretou:

 


— Mas se tem uma coisa que une o povo, é o mal gosto. Isso aí é democrático! Tá aí uma coisa que não tem elite, cota ou vestibular. É todo mundo no mesmo buraco!


E ele estava certo. Se há um direito verdadeiramente inalienável no mundo, é o direito de gostar de coisas ruins. Você pode nascer pobre ou rico, burguês ou proletário, flamenguista ou corinthiano. Mas nada disso te livra do risco iminente de bater o pezinho ao som de "Descer para BC", gostar de arquitetura com luz neon, rebaixar o carro, falar “gratiluz” ou fazer tatuagem com frase em latim.


— Você percebe que algo deu errado quando passamos de Tom Jobim para “Descer para BC” — lamentei, com a melancolia de um professor de filosofia prestes a fazer a correção do ENEM.


— Ah, e não foi só na música, não — apontou Nicotina, puxando do bolso um cigarro amassado. — No futebol, saímos de Zico e Sócrates para jogador que dança TikTok antes de bater pênalti. No cinema, trocamos Glauber Rocha por filme da Barbie. No romance, saímos de Machado de Assis pra trend de “livros para ler se você gosta de chorar”.



Careca deu uma risada e se inclinou na cadeira.


— A verdade é que bom gosto dá trabalho. Mal gosto é um atalho para a felicidade. É tipo miojo: pronto em três minutos e sem qualquer valor nutricional.


— E outra — emendei, tomando um gole da cerveja —, bom gosto cria rivalidade. Mal gosto une. Você já viu dois caras brigando porque gostam da mesma música ruim? Não! Mas bota um fã de Chico Buarque e um de Caetano Veloso na mesma mesa, e pronto: surge uma nova guerra fria.


Nicotina estalou os dedos, como quem teve uma epifania.


— Tá aí! Por isso que, nos bares, só toca coisa ruim. Porque é impossível discutir Kant ouvindo Wesley Safadão. O bar não quer saber de tensão intelectual, quer saber de manter a paz.


— Mas aí, a pergunta filosófica que fica é: se o gosto ruim une mais que o bom gosto, então não seria o mal gosto o verdadeiro bom gosto? — questionei, já afetado pelos efeitos metafísicos da cerveja.


Careca fez cara de quem queria responder, mas antes mesmo que pudesse, Nicotina interrompeu:


— Pera lá! Vocês estão confundindo duas coisas. O gosto até pode ser pessoal, mas a beleza não é relativa.


— Como assim? — perguntei.


— Simples: existe critério para julgar a beleza de uma coisa. Pode até ser que uma pessoa prefira uma música ruim a uma boa, mas isso não muda o fato de que uma é ruim e a outra é boa. O problema do mal gosto é que ele não quer se comprometer com critério nenhum!


— Exato! — concordou Careca. — O mal gosto é preguiçoso. Ele não quer apostar em um estilo, não quer se preocupar com harmonia. O mal gosto pega tudo que já existiu, junta numa salada e serve frio. É por isso que o povo gosta. Porque não precisa se esforçar pra entender.


— Isso explica aquele tipo de música que não dá nem pra classificar — arrematei. — Tipo aquelas que começam com um forró, no refrão viram um funk, depois metem um sertanejo do nada e no final tem um beat eletrônico que parece saído de um computador da NASA.


— Isso! — exclamou Nicotina. — É como se jogassem todos os estilos dentro de um liquidificador e servissem um smoothie de mal gosto! E a galera adora porque agrada todo mundo e ninguém ao mesmo tempo.


— Enquanto isso, a boa música demora pra ser feita — completou Careca. — Ela tem que se estruturar, construir sua identidade, encontrar sua harmonia. Mas o problema é que a paciência morreu. Ninguém quer esperar.


Fiquei um instante refletindo, observando o copo de cerveja como se fosse uma caverna platônica prestes a revelar uma verdade oculta.


— Então, no fim das contas, o mal gosto vence porque é mais fácil?


Nicotina tragou seu cigarro, lançou um olhar cansado para o mundo e decretou:


— O mal gosto vence porque é acessível, não desafia ninguém, não exige nada. É como Igreja de Esquina: tá sempre ali, pronta pra te receber.

 

Siga nosso canal no WhatsApp e receba as notícias relevantes para o seu dia


Careca balançou a cabeça e, com a sabedoria de um homem que já perdeu muitos pênaltis, concluiu:


— Rapaz… Isso aí dá uma tese de mestrado. Mas por enquanto, vamos pedir outra cerveja enquanto toca mais uma sofrência.


E assim seguimos, afogados na democracia do mal gosto.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

Tópicos relacionados:

cotidiano cultura filosofia musica

Acesse sua conta

Se você já possui cadastro no Estado de Minas, informe e-mail/matrícula e senha. Se ainda não tem,

Informe seus dados para criar uma conta:

Digite seu e-mail da conta para enviarmos os passos para a recuperação de senha:

Faça a sua assinatura

Estado de Minas

Estado de Minas

de R$ 9,90 por apenas

R$ 1,90

nos 2 primeiros meses

Aproveite o melhor do Estado de Minas: conteúdos exclusivos, colunistas renomados e muitos benefícios para você

Assine agora
overflay