Um dos grandes nomes da história do Atlético, Toninho Cerezo sofre rejeição de parte da torcida por ter atuado também no Cruzeiro
Quando ele chegou, vindo de Itu, achei que fosse enfim realizar meu sonho de cachorreiro: ele se chamaria Cincunegui. Acontece que não valeram de nada as minhas explicações sobre o uruguaio que jogara no Galo e tinha como inspiração o compatriota Obdúlio Varella, capitão da celeste de 1950. Olhei para a fuça daquele jovem pastor, e então, solene, cravei: “Toninho Cerezo”.
Por algumas semanas, Cerezo comandou a meia-cancha em nosso quintal, no sobrado da Vila Mariana, em São Paulo. Mas o fato é que seu nome novamente sofria oposição, como se meus familiares fossem aqueles atleticanos que jamais perdoaram o melhor meio-campista da nossa história por ter ido jogar no Cruzeiro. De forma vil e sub-reptícia, passaram a chamá-lo de Batuque.
Corriam os meses, e Cincunegui/Cerezo/Batuque parecia vitimado por essa crise de identidade. Em 2016, ano do golpe, a polarização já prenunciava os píncaros que nos levariam à vitória do neofascismo dois anos depois, sob Jair Bolsonaro. A Vila Mariana batia panelas de forma particularmente furiosa. Então, disposto a afrontar a vizinhança, resolvi acabar com toda aquela democracia em torno do nome do MEU cachorro: “Chega! Ele vai se chamar Fidel”. E assim foi.
“Fidel Castro?”, me perguntavam sempre, com aquele olhar de incredulidade e repulsa. “Não, não, ele ainda não foi castrado, talvez um pouco mais velho eu possa decidir fazê-lo, ainda não sei.” Fidel veio ratificar uma vergonha alheia para a qual atinamos tarde demais: éramos a Família F – Fabi, Francisco, Fantasma (nosso whippet), Fidel e este que vos fala. Um dia, depois de tomar umas canjibrinas, tratei de cuidar desse ridículo incorporando-o aos fatos aceitos e celebrados da vida, na forma de uma tatuagem. Um F em letra gótica que hoje carrego, orgulhoso, no antebraço esquerdo.
Assim como o filho do Fidel Castro, o nosso Fidel tornou-se o Fidelito. Foi comprado com o intuito de fazer a segurança em nossa casa na Bahia, lá onde Judas trocara as botas por umas Havaianas. Como cão de guarda, a única coisa que de fato guardava era a sua bolinha. De resto, receberia o ladrão com a mesma camaradagem com que recebia a família F.
Fidelito tornou-se rapidamente a melhor e mais eficiente máquina de produzir afeto que conheci em toda a minha vida. 45 quilos de um amor que se manifestava em seu estado de arte quando as orelhas empinadas de pastor alemão se punham deitadas, como a esperar o afago da gente. Às vezes se deitava e, para continuar nos observando, devoto e apaixonado, seus olhos deixavam transparecer em sua parte inferior um filete branco que nos desarmava completamente. Eu amava o Fidelito como se ele fosse o Galo.
Fidel me acompanhou onde eu estivesse nos últimos sete anos. Percorreu comigo dezenas de milhares de quilômetros de estrada, sendo sempre o meu álibi para o medo do avião – afinal, por seu porte, Fidel estava proibido de voar. Deitamos juntos no chão da sala quando pela primeira vez fiquei “sozinho” depois do diagnóstico do câncer da Fabi. Ele sabia o que eu estava sentindo, e sabia exatamente como me acolher em seu monte de pelos. Quando ela morreu, em fevereiro do ano passado, foi à sua máquina de produzir afeto que recorri dilacerado.
Atleticano exilado, ora em São Paulo, ora na Bahia, sou, por motivo de força maior, um torcedor de sofá. Eu no sofá e o Fidel aos meus pés (nunca estava a menos de dois metros de mim). O “altarzinho” que eu e Francisco nos habituamos a fazer, com faixas, bandeiras, estátua de São Víctor e toda a sorte de galos no entorno da televisão. A cada gol do Galo, abraçávamos o Fidel como se fosse um dos nossos. O Cincunegui. O Toninho Cerezo.
Fidel se foi no dia 29 de dezembro do ano passado. Tinha apenas 7 anos. Câncer. Sem poder contar com sua máquina de afeto, passei dois dias em posição fetal, comendo o pão que 2023 amassou. Na noite do dia 31, me pus de pé. Escolhi deixar em 23 o que é de 23. Vai ter revanche! Pulei as sete ondinhas e agradeci ao Fidelito por tamanha amizade e carinho. Obrigado por tudo, meu melhor amigo, você também estará vivo a cada gol do Galo.