Como traficante de queijo canastra, atuo há décadas na rota Minas Gerais-São Paulo-Bahia. Seja para consumo próprio ou para aplicar nos amigos, viajo sempre carregado com alguns quilos do melhor branco que conheço, o canastra da cidade de Patrocínio, em geral oriundo do cartel do Mercado Central de Belo Horizonte.
É um canastra, vamos dizer, meio canastrão, visto que Patrocínio, assim como Araxá, está apenas na periferia da Serra da Canastra. No entanto, para o meu paladar de mineiro apaulistado, baiano inimigo do coentro, trata-se do melhor canastra do mundo. Havendo objeções, favor enviar amostras para que eu possa melhor avaliá-las.
Desde a última quarta-feira, ficou claro o motivo pelo qual a cidade é capaz de produzir esse canastrão em estado de arte: as vacas de Patrocínio não comem grama. Pela qualidade do queijo que produzem, é possível que estejam a comer nos melhores restaurantes – rúcula, espinafre, mostarda, agrião, alface americana.
Em contrapartida, como se pôde ver no “campo” destinado à peleja entre os Atléticos, a braquiária graceja livremente, sem que esta inimiga, a vaca, lhe confira a poda habitual. No caso do jogo em questão, a grama poderia obter aquele mesmo selo conferido aos “ovos de galinhas livres”. Uma braquiária ao Deus dará, daqui a pouco apta a algum projeto de agrofloresta.
Dessa forma, o jogo se deu em condições absolutamente extraordinárias, pois disputado numa selva. Lá embaixo, isso a Globo não mostra, as chuteiras invisíveis driblavam cipós e tiriricas, enterradas na escuridão da mata fechada. O inimigo espreitando, a gente vulnerável naquele verde profundo e inesperado. O Galo era os americanos; a Patrocinense, os vietcongues. Deu no que deu.
Houve quem reclamasse das bolas aéreas que acabaram por nos vitimar, mas o que se podia fazer senão levar o combate para além das copas da mata fechada? Fosse no sertão, e a bola ainda poderia rolar por entre as veredas. Mas não era esse o caso daquela arapuca amazônica.
Não pense você, cidadão de Patrocínio, que este calunista está a desdenhar do estádio. De jeito nenhum. Reside justamente aí a minha admiração pelos estaduais. Eles são uma máquina do tempo em que viajamos de volta aos... estádios! Enquanto estamos a discutir a grama artificial, e patati patatá, vem a Patrocinense nos esfregar na cara a sua braquiária natural, descabelada, sobre a qual os fracos não têm vez.
Verdade que sempre temo pela má impressão que se possa causar às nossas grandes estrelas. Algo como “putz, coitado do cara, saiu lá da Europa e agora desembarca de um teco-teco pra jogar nesse pasto, deve pensar onde foi amarrar sua égua”. Veja que o Hulk arrumou logo uma caganeira.
No entanto, se eu fosse fazer uma preleção pra esse pessoal no acanhado vestiário, diria a eles que ali mora a alma do velho futebol pentacampeão do mundo, que Pelé e Reinaldo passavam a metade do ano em ferrenha disputa pelo interior desse mundão comendo a braquiária que a vaca deixou passar. E que esse espírito de luta e amor pelo jogo é que forjavam seus espíritos para o semestre seguinte, quando enfim abriam-se as cortinas dos torneios nacionais.
O estadual é o terrão, a Paraíba do Hulk menino, a Irajá do Paulinho, o velho Mineirão com seu velho tropeiro e o bolinho de feijão, a geral, a arquibancada de cimento, o Alçapão do Bonfim O estadual é esse caldo de cultura que resiste nas entranhas da braquiária, na selva de Patrocínio. Louvado seja!