Clássico não se ganha de véspera, como diz o outro, fato tristemente registrado para a história no primeiro confronto contra o arquifreguês no Terreirão do Galo. Dessa vez, no entanto, não importa se vamos ganhar ou perder – ao contrário do que disse a Dilma, todo mundo vai ganhar. Claro que eu tô considerando que o Samuel Rosa tem razão: “Todo mundo é atleticano”. De modo que o Galo já ganhou.
Explico. Hoje o Califórnia Alvinegro deve ser entregue à cidade. O maior painel de grafite de Belo Horizonte, certamente um dos maiores do mundo. Uma declaração de amor ao Galo, feita pelo torcedor para o torcedor. No lugar do cinza, morto, o preto e branco vivo. As paredes do Califórnia agora falam. O Galo ganhou.
Não é que se tenha posto ali qualquer coisa, um escudo aleatório, uma provocação fortuita. Quem fez a curadoria daqueles retratos sabe tudo da atleticanidade, conhece a nossa história e o momento que vivemos. Agora que o Galo tem dono, agora que jogamos na “arena” e o povão ficou de fora, o Califórnia Alvinegro vem lembrar quem somos, de onde viemos e pra onde vamos – o famoso quencossô, doncovim, proncovô.
Dona Alice Neves, tia Terezinha, aquele negro retinto com sua toca de camelô, o pai com o filho na carcunda, os escudos de todas os tempos, o Galo Doido, a menina que chora a glória do título e seu pai que não conseguiu esperar, o Djonga, que é a favela inteira e a atleticanidade encarnada, o fogo nos racistas desde 1908.
Isso tudo ali, envolvendo a “arena” chique e suntuosa, o Galo SA em sua torre de vidro, é muito mais do que simples ornamento. É o que são o pixo e o grafite em seu estado punk original – um grito de alerta e uma tomada de assalto. A cidade nos pertence, o seu muro nos pertence, a minha vista não é propriedade sua e eu vou tomá-la de você.
A tomada do Califórnia é o nosso abraço de tamanduá na Arena MRV. Se o muro separa e a ponte une, agora o muro virou a ponte. O contrário da ponte do Temer, não sei se o raro leitor irá se lembrar – a “ponte para o futuro”. No nosso caso, é justamente o contrário – a ponte para o passado. Lembrar, para não se deixar engolir. Nunca esquecer, para que nunca nos roubem a alma.
Tia Célia, Belmiro, Ubaldo, Dario. São como os orixás que se pintam em muitos muros de terreiros Brasil afora. A “arena”, agora sim, é o Terreirão do Galo. Omolu, Ogum, Oxum, Oxumaré, todo o pessoal, manda descer pra ver o Califórnia Alvinegro! Pena que o clássico que se joga hoje tem torcida única. Até o cruzeirense merecia caminhar por ali, percorrer a Via Expressa como a nossa Via Sacra ao contrário, do calvário até o renascimento.
Houve um tempo em que bastava isso. Bastava a Massa no Mineirão lotado, time de preto, de favelado. Quem gostava de título era cartório, a gente dizia. Bastava o 25 de março, o Réveillon fora de época na sede de Lourdes. Bastava o copo quebrado no chão. O desfile do nosso manto quando o atleticano descia para a praia, Cabo Frio, Guarapari, Arraial. E assim resistíamos, acreditando que a nossa hora ia chegar. Isso quando o Xande de Pilares ainda cantava no chuveiro, e até outro dia, 2013, quando enfim ela chegou.
Agora, graças a São Victor, que também tá no muro, a gente se acostumou a ganhar. E a gente merece tanto, mas tanto, que ganhou foi pouco. Tamo aqui pra cobrar a fatura, as muitas duplicatas da dívida dos deuses com a Massa. Ganhar do Crüzeiro não é só bater o arquifreguês. É sobre merecer, sempre.
Se o cruzeirense quiser grafitar a sua história no muro, vai precisar de 10 metros quadrados e uma latinha de spray. Corre que ainda dá tempo de ficar pronto pro clássico! Gaaaalooo!