Este ordenhador de pedras deixou-se acomodar no sofá desde muito cedo para acompanhar a grande peleja entre o Galo e o Carcará, na última Quarta-feira de Cinzas. Na verdade, o ordenhador de pedras encontrava-se funcionando a meia fase, o cérebro como o motor de arranque da velha Belina 77 que ele possuíra como colecionador de automóveis antigos – a bem da verdade, tão somente um acumulador de carros velhos, vício do qual felizmente se livrou, graças a Deus mas principalmente aos boletos que também se acumulavam com os ciscos do carburador.

O que a ressaca do Carnaval não faz com o sujeito folião, do tipo que come confete e enforca-se na serpentina... O ordenhador de pedras bebeu toda a cachaça da cidade, e agora se deitava no sofá como se fosse o colinho de mamãe. E esperava o seu Galo como quem aguarda papai, a fim de pedir perdão pelas noites de desbragada festança, aquele desbunde providencialmente sequestrado pela amnésia profunda, a que já se poderia chamar de coma.

 



O ordenhador de pedras, já tendo vislumbrado o crepúsculo da segunda idade, livrou-se de vícios diversos. Mas nem mesmo a inscrição no AA – os Atleticanos Anônimos – foi capaz de afastá-lo da dependência para com o seu Galo. O seu Rivotril Litrão. E em busca de mais uma dose, lá estava ele, naquela quarta-feira última, a recolher suas próprias cinzas dispersas no sofá. O Galo haveria de amalgamar os seus caquinhos. Colocá-lo de pé. Fazê-lo um homem finalmente pronto para o ano novo, com suas promessas de pilates, ghee e açúcar de coco.

Mas aí vem o Galo, e o ordenhador de pedras começa a sentir-se como aquele investigador de polícia dos livros do Rubem Fonseca. Azia, um copo de leite saído da geladeira deserta. Felipão, Scarpa escalado na esquerda. Parcas emoções e pensamentos imperfeitos. O coração como a víscera de um bolsominion, tomado pelo ódio e a pulsão de morte. Boca seca, a cabeça o recuo da bateria. Gol da Tombense.

O ordenhador de pedras observa as linhas de quatro. Se o Galo fosse uma escola de samba, seria a Desunidos da Viradouro. A Mocidade Triste. Corre a anotar essa bobagem, porque sabe que será duro o exercício da profissão, o tirar leite das pedras. Mas, em sua cracolândia doméstica, o ordenhador também sente o palpitar revigorante do coração ao ver Alisson empatar aquela pelada, o solteiro que enfim destruía a zaga do time dos casados com seu samba no pé.

Dose bem aplicada, o cachimbo do Alisson dando aquele gás, o ordenhador de pedras pôs-se de pé pela primeira vez desde a terça carnavalesca no Bloco 77, os Originais do Punk. Subiu-lhe dos calcanhares até os fundilhos um ziriguidum revitalizante, um desejo de uma última Heinekenzinha que pudesse, aí sim, encerrar o Carnaval. Estaria a ver, enfim, o Desfile do Campeão?

À beira do campo, no entanto, como um bedel do Dom Silvério, o ordenhador de pedras pôde ver o Felipão dando vivas ao menino Alisson. Deve ter pensado: “Esse rapaz tem alegria nas pernas”. Felipão não dá. Quer dizer, a gente já sabe no que vai dar. Então a ressaca abateu-se em definitivo sobre o ordenhador, aniquilado pela selvageria do Carnaval e aquele Rivotril batizado. Tarja cinza, na melhor hipótese, adequado àquela quarta-feira que, diria o Goulart, ano que vem tem mais.

Então dormiu, no aguardo da virada, esperando Godot. Os Desunidos da Viradouro. A Mocidade Triste. Hoje tem mais.

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Antes de ser grafiteiro, o artista Seth Dazrua é um mágico: conseguiu imprimir um retrato do ordenhador no painel do Califórnia Alvinegro em versão, vamos dizer, bonito. Não por isso, fiquei por demais honrado com a homenagem, ainda mais ladeado por tia Terezinha, seu Laerte, dona Alice Neves, tia Célia, Vicente Mota, Djonga, o Macalé da Galoucura. O ordenhador de pedras cravado na pedra. Obrigado, Felipe Arco, Seth e o time todo!

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