O Atlético exerce tal fascínio em seu ex-jogador, que por vezes chega a dar pena do pobre diabo, açoitado por aquela dor de cotovelo que, a exemplo de um infarto, sobe pelo braço e alcança com tudo o coração – o coração carcomido do atleticano sofredor.
Quando o sujeito negocia sua saída, pensa estar apenas evoluindo em seu ofício, um passo novo, um degrau a mais, faz parte. Mas, no quentinho da cama, numa quarta-feira qualquer, já distante, distrato feito, contrato assinado, dá-se conta da patologia incurável da qual é vítima. Nunca imaginou que pudesse ter sido picado por aquela mosca. Agora é um atleticano doente.
Isso não é de hoje. Cerezo, Éder e Reinaldo saíram do Galo, mas o Galo jamais saiu de Cerezo, Éder e Reinaldo. Nelinho, por sua relação ancestral com o Crüzeiro, nunca se sentiu à vontade para declarar o amor sincero ao alvinegro. Preferiu esconder a doença, terceirizando às filhas o exercício de sua atleticanidade.
O uruguaio Héctor Cincunegui, campeão brasileiro no Galo de 71, era Danubio e Nacional. Morreu atleticano em 2016 em Montevideo. Marques era corintiano. Era. Dátolo era Boca. Era.
O caso mais emblemático, no entanto, é o de Diego Tardelli, que antes de chegar ao Atlético passara ileso por São Paulo e Flamengo, além de Betis e PSV. Vendido por nós para o futebol chinês, atravessava madrugadas insones a ver seu Galo contra a Caldense no Campeonato Mineiro. Ganhou olheiras e um coração quentinho.
Ronaldinho Gaúcho foi diagnosticado atleticano patológico desde que a Galoucura levantou a bandeira de dona Miguelina, sua mãe, que em 2012 enfrentava um câncer. Quando fez o gol contra o São Paulo na Libertadores de 2013, no então Morumbi, os leitores labiais traduziram sua carta de amor: “Aqui é Galo, porra!!!”. Se não tiver uma bandeira do Atlético em posição de mais alto destaque em seu caixão, a culpa será toda do Assis.
Então chegamos ao parceiro do R10 naquele ano mágico de 2013, o Bernard. Pobre Bernard, uma década de exílio até a anistia geral e irrestrita que agora o traz de volta ao Clube Atlético Mineiro. Durante esse longo período de separação, pode até ter feito jus ao apodo de Alegria nas Pernas. O coraçãozinho, no entanto, batia no ritmo dos tambores da famosa Galoucura. No lugar do funk, no entanto, o blues...
Eu tentava acompanhar a final da Champions, quando fui abduzido por um espetáculo muito mais majestoso do que aquela peleja de endinheirados em banheiros de mármore carrara: naquele mesmo dia e horário, desembarcava no aeroporto de Confins o nosso Bernard. Carregado pela Massa, como Ubaldo e Tardelli, era o soldado a voltar da guerra e reencontrar o amor da vida.
Diz-se desde sempre que no Galo o sujeito entra funcionário e sai torcedor. É fato incontornável que não se explica, assim como não se explica esse sentimento diferente a que chamamos atleticanidade – tão único, e a prova disso é não haver no mundo uma “flamenguicidade” ou coisa que o valha a rivalizar conosco. Conosco ninguém podosco!
No máximo, um certo corintianismo. Mas que tampouco se iguala, porque muito mais circunscrito ao jogo de futebol, à bola na casinha. A gente não – a gente não liga pra futebol, o nosso negócio é o Galo, ao mesmo tempo partido político, religião, cachorro e cachaça. Além de o imprescritível Rivotril Litrão.
“E ninguém segura”, o pessoal cantava, “o Bernard é 100% Galoucura!!!”. Coitada da final da Champions perto daquele reencontro do filho que volta pra casa, o soldado e sua amada, Alegria nas Pernas e no Coração. Enquanto houver uma massa de gente a buscar no aeroporto o atleticano patológico, o futebol respira sem aparelhos.
Claro que tem a exceção a confirmar a regra. Veja o Ademir. Entrou funcionário e saiu carrasco. Nunca fez um gol como aquele de domingo passado, tava só esperando a gente, salivando por uma vingancinha barata, um troco cheio de moedas, o Galo atravessado em seu pescoço de galinha, Deus me livre da maldade das pessoas boas.
Digamos que Ademir também é acometido pelo problema das pernas inquietas – Alegria nas Pernas, vá lá, mas um coração inundado de ressentimento e rancor. Só isso explica a trajetória daquela bola, e a gana com que saiu para o abraço de tamanduá.
Pobre Ademir, 5% Galoucura. Está livre da doença, mas jamais saberá o que é o amor. Bem-vindo de volta, Bernard, love is in the air! Gaaaaaaaalooo!!!