Tá feia a coisa, meus amigos, e o mais feio de tudo é a nossa Arena, ex-Terreirão do Galo, atual Varanda Gourmet. O Atlético é o azar em pessoa. Quando consegue construir seu estádio, ele acaba envolvido em tenebrosas transações. Vá lá, a gente pensava, pelo menos agora vamos ter a nossa Bombonera.
O corvo, no entanto, fez morada em nossa casa: ali o canto não reverbera, não há acústica possível, somos todos surdos-mudos, boneco de posto a balançar as mãos, em silêncio sepulcral. O caldeirão, se muito, é uma caçarola de ágata, uma panelinha com teflon.
Assim morre a torcida mais doida do mundo. Quem viu, viu. Primeiro comeram nosso patrimônio material. Agora, como traças imparáveis, comem também o patrimônio imaterial, aquele que deveria ser tombado, preservado como história e cultura, o único que verdadeiramente importa.
Quando se foi o tropeiro do velho Mineirão, pensei cá com meus botões, vão-se os anéis, ficam os dedos – afinal, a turcidugalo seria sempre a turcidugalo, esse monumento à fé e à faca amolada, essa máquina de produzir atleticano novo. Agora, sem os anéis, percebo que os dedos também sumiram, ficaram só os cotoco, credo, levaram foi tudo.
Como se vítima de uma gangrena, o atleticano vai se desfazendo, morrendo pouco a pouco, assassinado pelo mármore dos banheiros, pelo estacionamento a 150 surreais, pela acústica que impede seu canto, pelo público forjado nos playgrounds dos grandes edifícios.
Os donos do clube não estão nem aí pra isso. Nunca frequentaram a arquibancada, são os reis do camarote. Retratão da elite brasileira, orgulhosamente burra e cafona, incapaz de enxergar valor na manifestação cultural do povão, a quem só deseja escorchar, em benefício do próprio bolso.
São quase todos herdeiros, todos filhos do Lamounier. Todos, de alguma forma, já ganharam sua chuteira nos “sorteios” da vida. Aliás, a chuteira é o de menos, claro, aquilo foi mais uma brincadeira, aposto, um trote de playground. Importante, importante mesmo, é a capitania hereditária, esta tão certa quanto sem dúvida.
O Galo já meteu seis no Flamengo com Mexerica de titular. O Galo fez quatro e virou em cima do Flamengaço Classificadaço, no jogo mais doido da nossa história. O Dinho ganhou de um dos melhores Cruzeiros de todos os tempos. Ganhamos uma Libertadores e também uma série B no gogó do torcedor mais apaixonado do mundo. Agora já era. Quem ganha é o filho do Lamounier. Aquele velho torcedor, posto pra fora da festa, foi cuidar da vida.
Se não fosse sua torcida, o Galo teria desaparecido do mapa. Seu torcedor teria minguado, seríamos velhos como um botafoguense, poucos como um tricolor das Laranjeiras. O atleticano é dos raros torcedores do mundo que nunca dependeram de título para se fazer massivamente presente. O atleticano, um dia escutei de um amigo rival, não torcia para o Galo – torcia para a sua torcida. E foi justamente isso que acabou por salvar o time de tantas bancarrotas, dentro e fora de campo.
É esse jogador que hoje se descarta, como lixo que não serve mais. Evidentemente que matarão a galinha dos ovos de ouro, já que nunca mais haverá alguém convertido em razão da festa da arquibancada, agora inexistente e impossível. Mas o assassinato da galinha dos ovos de ouro é corriqueiro no capitalismo mais selvagem, esse que chupa a laranja até as profundezas do bagaço e dane-se aquilo que ficará às novas gerações.
Sempre há tempo de se fazer alguma coisa. E se exigíssemos providências com relação à acústica da Arena, ou todos cancelaríamos nossos GNVs? E se ninguém mais entrasse no estádio enquanto ele permanecesse essa Varanda Gourmet? E se achássemos uma praça, uma outra localidade onde pudéssemos permanecer torcedores do velho Mineirão? E se firmássemos uma série de princípios inegociáveis que garantisse a sobrevivência da torcida como o patrimônio que ela verdadeiramente é?
A única opção que não deveria existir é ver a torcida do Galo morrer e ninguém fazer nada.