Acordei com a notícia de que “apagaram o Fred Melo Paiva”. Olhei em volta, ainda estava no quarto, deitado na cama. Mas quem poderia garantir que eu não tinha vestido o paletó de madeira, e que, ao partir dessa pra uma melhor, levara junto o carreto dos meus móveis?
Teria sido uma vendeta? Um acerto de contas, digo, um boleto vencido? Uma escaramuça no trânsito, um dedo médio, e então a estúpida tragédia? Não era possível que estivesse morto justamente agora, prestes a jogar uma semifinal de Libertadores e outra de Copa do Brasil. Quem morre de véspera é o peru, aqui é Galo, porra! Simplesmente inaceitável.
Me apagaram mas foi do muro, ufa!, fiquei parecendo aqueles alvos de papel nas escolas de CACs. O artista do apagamento teve o cuidado de não vandalizar a obra original, do craque grafiteiro Seth Dazrua. Delimitou certinho a silhueta do inimigo a ser eliminado.
Ficou excelente: a arte transformada em não-arte, como o urinol do Duchamp, a escancarar tantos novos significados. Eu, que tava ali sorrindo tranquilo, agora a eminência cinza a avisar de todo o autoritarismo. E de que é possível vencê-lo, porque acima de tudo ele é burro.
Quem terá feito o serviço? O João Doria, que apagara ele próprio, com a mesma tinta cinza, o maior painel de grafite de São Paulo? Ou algum faz-tudo em trabalho análogo à escravidão? Apesar do tom minimalista, vejo na obra ressignificada as digitais de Rubens, o grande mestre barroco. Penso, ainda, que há alguma influência de Rafael, o célebre pintor renascentista. Por fim, o resultado nos remete ao “photoshop” produzido por Stálin quando fazia desaparecer seus antigos aliados em fotografias históricas do regime soviético.
Penso em dona Alice Neves, que primeiro costurou nossa bandeira, em 1908, e ajudou a capinar o lote onde o Galo recém-fundado iria treinar. Um time nascido com o propósito democrático de acolher a todos, não importando a cor, o credo ou a política. Preto e branco. Hoje, Alice é só um retrato no mesmo muro, até que se apague também.
No País das Maravilhas, onde habitam os bilionários, posso ouvir a rainha louca: “Cortem-lhe a cabeça!”. Cabeça arrancada, virei, segundo o Juca Kfouri, “o Tiradentes do Galo”. Sim, é mais ou menos como os ditadores que queimam livros. Estão, na verdade, a produzir best sellers. “Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha, e eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagrete”, toca Raul! “Meu cérebro logo pensou: que seja, mas nunca fui tiete.”
“Menos mal que não o enforcaram, esquartejaram, salgaram e penduraram nos postes nas estradas mineiras, como fizeram com Joaquim José da Silva Xavier. Apenas escreveram novo capítulo honroso na vida de Fred Melo Paiva, e entrarão para a História pela porta dos fundos.”
Vindo de quem vem, evidentemente que o apagamento é prêmio. É o Prêmio Esso que, finalista, perdi. O Emmy Internacional, Oscar da televisão, que, indicado, também perdi. Agora o meu troféu tá lá exposto na avenida, em curta temporada, não perca: ao centro, a eminência cinza; à minha direita, o ator Daniel de Oliveira, com o punho cerrado, símbolo de resistência e luta; à esquerda, um pai com a boca aberta, antes um grito de gol, agora O Grito mudo e desesperado de Edvard Munch. Não tá morto quem peleia, meu pai! E que tirambaço no pé.
É sempre importante lembrar o que é um bilionário. Em primeiro lugar, uma metástase do sistema. Não deveria existir, pelo bem do próprio capitalismo. Mas não se trata disso, e sim de lembrar a dimensão dessa grandeza: um bilhão é um milhão multiplicado por mil. Se você ganhasse um real a cada segundo, levaria 32 anos pra juntar um bilhão. Se hoje investisse um bilhão a 100% do CDI, seu rendimento seria de R$ 8.958.333 por mês.
Um bilionário compra o que quer. Gostou do restaurante? Vou comprar. Papai, eu amo o Galo. Toma, filhinho, é seu. No multiverso em que vivem, deve ser frustrante não poder comprar um reles cronista com tanto boleto vencido. O cronista apagado estará por aí, brilhando, enquanto houver Atlético. O bilionário será um quadrinho do Nilo Peçanha no Museu do Catete.
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Eles compraram um punhado de concreto, o ferro, a brita, o vergalhão, a esquadria, o muro. Sucatearam, venderam para eles mesmos, compraram de si próprios. Os ratos roeram a roupa do rei de Roma. Mas nunca vão comprar nossa paixão. Eles são o “benchmarking”, o “business plan”, o departamento de contas a pagar. NÓS SOMOS O CLUBE ATLÉTICO MINEIRO, sua alma e o seu coração. Não estamos à venda, meu amigo, não adianta insistir.