Quando o meu pai era menino em Araxá, ele desenhou um enorme escudo do Vasco na parede de cimento queimado do quartinho onde meus avós armazenavam a lenha para o fogão. Nunca entendi como aquela rebuscada nau portuguesa, feita em giz branco, pôde sobreviver aos tempos. Meu pai deixou de ser Vasco. Mas o Vasco ficou ali, como um Titanic afundado no subsolo da casa da vovó.

Criança, eu passava as férias em Araxá. E tão logo chegava na casa, repleta de cômodos e gavetas, alpendre e goiabeira, formigas e cachorro, descia as escadas para ver se ninguém tinha passado o apagador no Vasco do papai. E lá estava a caravela em mares sempre dantes navegados. E ali eu me deixava, como se o quartinho de lenha fosse a Capela Sistina, o escudão, meu Michelangelo.

 



 

Em sua volúpia reprodutiva, a família da minha mãe contava 15 irmãos e cerca de 35 primos de primeiro grau – cerca de, pois a conta foi num tal crescendo, que já não era possível afirmar mais nada. À exceção de uma gata pingada e uns gatos pingados, todo mundo Galo, tio torto, nora, cunhado, agregados em geral. Extraviado para o Rio de Janeiro, meu primo Marcelo sentiu-se compelido ao exercício de amor sincero ao alvinegro. Virou Vasco.

 

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Também, coitado, seria condenado ao degredo no balneário a depender de sua escolha. Àquela altura, nutríamos todos, mesmo os meninos, aquele ódio epidérmico, subcutâneo e visceral pelo Flamengo. Para dar conta do time da Globo, da CBF e da ditadura, o negócio era a formação de uma frente ampla. Bem antes da instituição da União Sinistra, o Vascão já era torcida de irmão.

Havia também alguns fatos históricos a nos irmanar. O Vasco guardava em seu passado longínquo a luta antirracista, assim como o Atlético acolheu desde sempre pretos e brancos, ricos e pobres, homens e mulheres. Eram, e são, os times de todos. Mais pra frentemente, como diria o Odorico Paraguaçu, este um confesso tricolor de aço, pesquisem, o Vasco ganharia o Brasileiro de 1974 em cima do Cruzeiro. Roubadaço, é honesto que se diga. Mas, bem, fooooodasse.

 

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A relação só se fez fratricida em duas ocasiões. Numa certa Copa dos Campeões do Brasil, disputada em 1978, o Galo tirou o Vasco nas semifinais e terminou campeão ao bater o São Paulo nos pênaltis. Depois, em 2005, veio o troco e foi bem mais grave. No dia 27 de novembro de 2005, o Atlético precisava vencer o Vasco. Goleiro Bruno, aquele, ainda chegou a pegar um pênalti de Romário. O empate em 0 a 0 decretou o rebaixamento do Galo.

Naquela noite telefonei para o meu pai em busca de algum alento. A minha avó já tinha morrido, sua casa não era mais nossa, Araxá era a nossa Itabira, um retrato na parede. Meu pai não torcia pra ninguém. Mas tava chorando na mesa de um restaurante porque, de repente, eclodira ali o hino do Atlético, entre lágrimas e bebedeiras.

Pra mim, Romário perdeu por querer aquele pênalti. E o Vasco nunca deveria ter feito aquilo com a gente. Hoje, o meu pai é Galo. E eu tenho pra mim que tudo começou naquela noite, quando finalmente o seu Vasco se apagou na parede da memória.

 

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“Vascão, Galão, torcida de irmão!”, cantávamos todos, Galoucura e Força Jovem, nas arquibancadas do velho Mineirão. Meu primo há de perdoar esse alvinegro das montanhas, mas hoje seremos Caim, e vocês, Abel. Que o atropelo se dê sem chance de defesa, como se a gente fosse o Porsche, e vocês, o empreendedor moderno em seu Uber, sua moto ou sua bicicleta.

Que nos perdoe o Romário, a família do Paulinho, o Paulinho da Viola, o Eduardo Paes. Pensem vocês que, se a gente passar, pode ser que venha o Flamengo. E nada no mundo será mais importante do que esse acerto de contas. Vocês sabem o quanto a gente merece.

 
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