Lendo a história da Argentina e a da criação da capital, Buenos Aires, me dou conta que, à parte dos nomes e sobrenomes envolvidos, é em quase tudo muito parecida com a de todos os outros países sul americanos, e suas principais cidades.

 

Começa sempre com “fulano, liderando uma esquadra de caravelas em nome do Rei espanhol/português aportou na baía/ilha” e prossegue com “encontrou os nativos que o receberam, espantadíssimos, com coroas de flores ou flechas”.

 

Seguem as artimanhas (“viemos em paz” e “aceito um espelho em troca por metade do continente”), rapidamente superadas pela dominação e conquista do território, e pela conversão religiosa forçada.

 

A partir daí, é uma enciclopédia de nomes espanhóis e portugueses se sucedendo em governos provisórios, vice-reinados, golpes, contra-golpes, levantes, juntas, conselhos, e sucessões, muitas sucessões, sobretudo após o século XVIII, quando o comércio já se encontra estabelecido com alguma regularidade, e a economia começa a se tornar relevante para a Europa.



A partir desse momento, os sobrenomes começam a se repetir e a se perpetuar nas histórias política e comercial, ainda hoje lembradas em avenidas, escolas, aeroportos, portos, hotéis, instituições públicas e privadas.


As histórias do novo mundo, aqui na América do Sul (e na América Central e Caribe, muito possivelmente), são como as “novelas de época”: rebuscadas e coloridas em excesso, mas em geral com enredos muito fraquinhos, meio ridículos e caracterizados por traições, golpes baixos e, em geral, muita pompa, mas pouca escola, pouco incentivo à cultura, pouco empreendedorismo e nenhuma biblioteca.


Enquanto a Argentina iniciava sua jornada republicana e criava sua primeira Constituição (1826), o Brasil engatinhava em termos civilizatórios, após a chegada de Dom João à colônia (agora “elevada” à condição de Reino, mas ainda na idade da pedra), poucos anos antes.


Enquanto a Argentina bebia os ensinamentos iluministas, o Brasil de debatia com o atraso, uma economia totalmente baseada na escravidão, a ausência de universidades e uma pobreza de espírito de dar dó.


Não por acaso, ao longo do século XIX, a população argentina cresceu 5 vezes, e sua economia 15 vezes, alçando o país à condição de sétima maior economia do planeta em 1908, com um PIB per Capita equivalente ao das maiores economias mundiais.

Região central de Buenos Aires e arredores, em vista do alto

Luis Argerich/wikimedia commons


Com o novo sistema de ensino público, obrigatório e baseado no espírito iluminista, a alfabetização do país alcançou 65% ainda no século XIX (14% no Brasil, em 1872), secundado por universidades, cursos técnicos e uma urbanização acelerada.


Buenos Aires era, em 1914, a décima-segunda maior cidade do globo, e abrigava mais de 1,5 milhão de habitantes. O metrô veio em 1913, mas a cidade já contava com uma rede de bondes elétricos desde 1863, alcançando em 1920, 875 km de trilhos e 3 mil carros em operação.


Enquanto a Europa se derretia em 2 guerras mundiais (em menos de 30 anos), devastando o continente europeu e tudo o que estivesse ao alcance de sua beligerância, a Argentina, mesmo rica e letrada, implodia sozinha, assolada por lances quixotescos e novelescos de troca de poder, golpes civis e militares, assistindo a uma derrocada econômica que já dura quase um século, e com tal intensidade e constância, que fica até difícil contar as alternâncias de poder.


Podem ter sido 15 golpes, mas podem ter sido 30 ou 40, se computarmos os mandatários que não duraram mais do que poucos meses na cadeira. Podem ser 100 ou 200, se considerarmos as intenções de golpe mas, numa conta ou noutra, salta aos olhos um certo tipo de auto-sabotagem enraizada na cultura dos povos latinos americanos, cujos exemplos são muitos.


Novelesco e quixotesco, como se houvesse um impedimento legal ao aprendizado e à superação das dificuldades já vividas. Uma insistência naquilo que, definitivamente, já não funcionou em diversas ocasiões, locais, culturas e línguas diferentes.


Mas não abri o editor de texto para falar mal da Argentina ou de Buenos Aires. Ao contrário, foi para registrar que, a despeito de 90 anos de desilusão econômica, das piores escolhas políticas e dessa dificuldade em aprender com os erros, os nossos hermanos cisplatinos moram numa cidade impecavelmente bem cuidada, com uma zeladoria de fazer gosto e com um paisagismo consistente.


Os parques e praças, que são muitos, estendem-se por quilômetros em jardins, ciclovias, espaços de descanso e contemplação, equipamentos de lazer infantil e de esportes, e quase todos sem qualquer fechamento, grade ou controle.


Com isso, são poucos os feios (e altos) prédios enclausurados em muros, cada um com sua própria área de lazer, que são o modo dominante em Belo Horizonte, São Paulo e naquela estranha cidade criada ao lado do - lindo - Rio de Janeiro, a Barra da Tijuca.


Ruas limpas, praças impecáveis, iluminação e sinalização no ponto certo, prédios colados às divisas (ocupando toda a largura dos lotes), muita densidade e muita, muita fachada ativa, com lojinhas e lojas maiores, cafés, restaurantes, farmácias, pequenas vendas e supermercados maiores, todos convivendo muitíssimo bem com os apartamentos em cima, com a população que transita pelas calçadas, e com o bairro.


Não por acaso, as praças e os passeios cheios de adultos e crianças, até tarde da noite, refletindo um nível de segurança pública que as cidades brasileiras já não conhecem desde os anos 1970 ou 1980.


A infraestrutura urbana, a rede de metrô e uma legislação urbanística que promove alta densidade de forma positiva, sem isolamento, parecem garantir que, mesmo após décadas de frustração e atraso econômico, haja uma estrutura, uma fundação na qual tudo floresce muito rapidamente frente a qualquer estímulo, por menor que seja.


No Brasil, mesmo com alguma prosperidade econômica, as nossas cidades só pioram, a educação só piora, a saúde só piora e a insegurança pública tem o título de “a maior taxa de mortalidade do planeta”. Há as cidades que nunca foram boas (e agora são péssimas), e há as que já foram boas, e pioram ano a ano, a olhos vistos.

E, por alguma razão, a cada novo Plano Diretor, as nossas cidades optam por menos densidade, mais espalhamento, mais regulamentação e mais restrições, dobrando apostas já experimentadas, e que jamais foram bem sucedidas.


Em oposição, os hermanos de Buenos Aires tem, à sua disposição, uma metrópole que já deu certo, e cresceu olhando sempre para o lado certo, jamais desperdiçando uma oportunidade de melhorar e recuperar áreas degradadas (como o Puerto Madero, na década de 1990).


Pode ser puro bom senso, mas pode - também - ser uma contingência cultural na qual a confluência do baixo nível de anafalbetismo, do alto índice de escolaridade, das influências iluministas e enormes taxas de imigração tenham produzido uma certa lucidez, e algum senso de objetividade, mesmo que não manifestado na política e, em decorrência das escolhas políticas, os caminhos trilhados na economia.


Uma cidade como Buenos Aires pode ser fruto de um bom nível educacional, de uma visão de futuro ou da ação de um pequeno grupo de agentes capacitados. Difícil saber, e no final do dia, pouco importa.


O que realmente importa, a pergunta que fica é: se as nossas cidades não são (e não estão) como Buenos Aires, nos faltam o nível educacional, a visão de um futuro melhor, ou um grupo de agentes capacitados?

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