Não há, de uma forma geral, cidades importantes nascidas - e desenvolvidas - a partir dos altos de morro. Quer dizer, pode haver uma ou outra, originada a partir de um ponto alto fortificado, mas a cada exceção temos a confirmação da regra: cidades têm origem no litoral, na beira de um lago ou de um rio.
Ao evoluir de sociedades coletoras para sociedades baseadas na agricultura e na pesca, a chave era a maior proximidade possível com os "corpos d'água", e a quase totalidade dos locais escolhidos eram planos, e nas áreas baixas.
Os pequenos grupamentos só se tornaram vilas e, mais à frente, cidades, porque obedeceram à lógica e às possibilidades físicas de então. Os morros e a ocupação das áreas altas vieram depois, ou pelo crescimento das cidades, ou por uma ocupação institucional específica, como palácios, mosteiros e outros, já numa fase posterior de maior avanço técnico.
De forma natural, a intuição se tornou conhecimento acumulado, e a lógica prevaleceu, com as cidades se desenvolvendo com mais força ao longo das margens, e nos terrenos mais planos. O crescimento veio também no sentido transversal, se afastando das margens, mas com menor ímpeto, e até se deparar com obstáculos e terrenos com maior declividade.
E esse é um conhecimento assentado e disseminado, a partir do qual a maior parte das populações e dos negócios se instala nas áreas mais planas, mais baixas e mais próximas dos corpos d'água, ao passo que os terrenos mais distantes e com topografia mais complexa têm menos construções, menor densidade e menos pessoas, menos negócios (quando algum) e escassos acessos.
A revolução industrial e os equipamentos que vieram a seguir permitiram acessar, transportar e edificar em locais antes impossíveis (ou excessivamente trabalhosos), mas ainda assim a lógica prevaleceu, agora atendendo a um outro vetor civilizatório: a preservação da paisagem natural e da própria natureza, com uma ocupação menos densa, mais contida e com uma projeção bem menor.
Trocando em miúdos, quanto pior é a topografia, quanto mais alto nos morros, menos acessos e vias existirão, maiores serão seus lotes e menor a ocupação de cada um deles, em comparação com as áreas planas e baixas das cidades, onde a tônica será a densidade, a proximidade e a oferta de infraestrutura urbana, transporte de massas, áreas de lazer, equipamentos e educação e saúde.
As encostas dos morros são, portanto, para poucos, e para os poucos que podem se dar ao luxo de não depender de transporte público. Para quem o deslocamento não é fator limitador mas, antes, uma escolha.
A parte inteligente desse conhecimento acumulado, deste bom senso, é que as cidades não são chamadas a investir em infraestrutura urbana para poucas pessoas, nem para os mais privilegiados, podendo concentrar-se em investir e manter a infraestrutura urbana para a grande maioria (esses nas terras planas e baixas).
Ganha o meio ambiente, com pouquíssima interferência viária, nenhum edifício institucional e casas em grandes terrenos, baixa taxa de ocupação, preservação da imagem natural e da própria natureza, além da drenagem natural.
- Cidades brasileiras: um eterno Lado B
E as nossas cidades litorâneas iam, até um certo ponto de sua história, pelo mesmo caminho, obedecendo ao mesmo conhecimento assentado, até que a leniência do poder público permitiu que os morros fossem invadidos e ocupados por favelas, tanto quanto permitiu e aprovou loteamentos em áreas impróprias, e com declividade incompatível.
Se no primeiro mundo os morros são zonas de baixa densidade, bastante preservadas, com poucas - e modestas - vias de acesso de baixa velocidade, nas cidades brasileiras são o pior dos dois mundos, com as mesmas poucas - e modestas - vias de acesso, quase nenhuma infraestrutura, transporte público de nona categoria (quando existente), extinção da cobertura vegetal, expulsão da biodiversidade, comprometimento das nascentes e a criação de zonas de risco, por problema oriundos da eliminação da capacidade natural de drenagem.
Mas há casos ainda mais anacrônicos, como o de um urbanista que, embora inspirado em Paris, escolheu um sítio para implantação de uma nova cidade tendo o rio como limite "de fundos", e não como articulador central, centralizando seu projeto nas terras mais planas e mais adequadas (mal sabia, parece, a cidade que o inspirou, Paris, que tem no Sena o ponto central e eixo articulador da cidade).
E não apenas virou as costas para o Arrudas quanto, ao fazê-lo, escolheu implantar a parte sul da cidade já num morro, fazendo de seu erro um caminho inexorável onde à cidade nada mais restou do que "subir o morro" em busca de áreas de expansão. Levou a densidade das áreas planas para as encostas dos nossos morros.
O resultado é conhecido: morros ocupados por (muitos) prédios e (várias) avenidas implantadas na crista dos morros (Avenida Raja Gabaglia, por exemplo). Para qualquer lado que se olhe, Belo Horizonte fez de seus morros um festival de prédios, suprimindo todo o verde que encontrou pela frente, numa paisagem mórbida, um skyline de extremo mal gosto.
Podiam ter previsto o resultado, até porque ao contrariar a lógica, o bom senso e a intuição acumulada (e disponível), criaram uma cidade na qual todas as soluções de transporte de massa são complexas, e sempre mais caras.
Tivessem os nossos planejadores a criatividade compatível com o estrago feito e o desafio imposto, talvez já tivéssemos 3 ou 4 linhas de metrô, entremeadas com bondes como os de São Francisco (que sobem morros sem a menor dificuldade há mais de um século).
Mas não.
Então, da próxima vez que alguém lhe perguntar sobre a redução da população de Belo Horizonte, ou pedir uma explicação sobre a queda livre do nosso PIB per capita e da atividade econômica do município, responda que, por aqui, somos diferentes: gostamos de ignorar o conhecimento acumulado, e preferimos fazer tudo ao contrário.
PS: E agora, como não bastasse, pretendem transformar o riquíssimo Parque Linear, aquele no berço da antiga linha de trem, na divisa de Belo Horizonte e Nova Lima, em mais uma avenida, e com ainda mais prédios "adornando" o nosso skyline.