Belo Horizonte amanheceu com céu nublado e pancadas de chuvas isoladas nesta terça-feira (26/3) -  (crédito: Edésio Ferreira/EM/DA Press)

Vista de Belo Horizonte

crédito: Edésio Ferreira/EM/DA Press

Você pode não acreditar, mas a TV brasileira já teve programas realmente engraçados, feitos por humoristas que não tinham outros objetivos que não fossem entreter e divertir a plateia. Não havia, então, tantas regras, tantos códigos, tanta sensibilidade e as pessoas - ainda - sabiam diferenciar críticas (mesmo que mordazes ou mal educadas) de agressões.


Ingênuas ou muito mordazes, inteligentes ou desprovidas de sutileza e de qualquer "finesse", voltadas para o público infantil ou liberadas para depois das 22 horas, os programas eram muitos, e os humoristas também.


Um deles era "A Praça é Nossa". Não fazia a minha cabeça (sempre fui mais Jô Soares, Mel Brooks e Monty Phyton) e mal conhecia os personagens, mas me lembro de um personagem, que fazia questão de "explicar tudo muito bem explicadinho". Era o Roni Rios, humorista falecido em 2001, após mais de 40 anos de carreira.


Me lembrei do Seu Explicadinho porque tenho falado nessa coluna, há mais de 30 semanas, sobre as chagas de nossa cidade. São chagas cuja origem não passa pelo mercado imobiliário, nem pela lógica, e menos ainda na somatória dos conhecimentos sobre cidades decantados ao longo dos últimos mil anos.


São chagas decorrentes de teses ruins, que propunham "uma abordagem inteiramente nova", criando cidades ideais. Essas teses ganharam corpo no início da segunda metade do século 20, e foram amplificadas no pós-guerra mas, a despeito das centenas de cidades europeias por serem reconstruídas, a utopia de uma cidade ideal não supera o conhecimento acumulado desde os primeiros burgos, e os europeus seguem fazendo o que sempre fizeram: ótimas cidades.


Mas o subdesenvolvimento tem vida própria (e um roteiro que nunca muda, num eterno "dia da marmota"), e a tese das "cidades ideais" conquista os corações e as mentes de gerações de planejadores urbanos, arquitetos, políticos de plantão. Mas o pior mesmo é que conquista, também, de professores universitários que, mesmo cegos à falta de resultados e ao excesso de utopia, permanecem formando profissionais com um olhar muito distante da realidade e do conhecimento assentado.


Na terra de Macunaíma, essas teses ganharam enorme tração e se tornaram a cultura dominante, moldando - a partir de Brasília - a legislação urbanística e os planos diretores de cada uma das cidades brasileiras, nas quais a densidade deve ser sempre baixa, quem pode se locomover mora perto, mas quem depende de transporte mora longe.


As teses versando sobre a cidade ideal negam os fatos e garantem um divórcio com a vitalidade, a densidade, a segurança pública e o transporte público de massa. Um conjunto de regras que garante que as nossas cidades sempre piorem, num futuro muito fácil de prever.


E que regras são essas? Recorro ao personagem de Roni Rios aqui, para explicar tudo muito bem explicadinho.


A regra que mais atrapalha é o Coeficiente de Aproveitamento, que é o parâmetro que determina o quanto se pode construir em cada lote. Esse número vem sendo reduzido a cada revisão do Plano Diretor, limitando cada vez mais a quantidade de apartamentos em cada terreno (cada vez menos pessoas morando em cada prédio). Obviamente, cada apartamento produzido custará mais caro, na medida em que os terrenos produzam menos apartamentos.


Com dessa regra, vem uma outra, a dos Afastamentos Frontal e Laterais, que impede que se construam prédios como os do Centro da cidade, colados uns nos outros. Afastamentos nada mais são do que um desperdício da superfície de cada terreno, e a limitação de quanto se pode construir em cada lote (tanto em área, quanto em quantidade de apartamentos). Mas não apenas porque encarece o custo de construção, na medida em que todos prédios passam a ter estruturas mais complexas e mais fachadas para revestir e tratar.


Até 1976, em BH, era possível construir 16 apartamentos de 2 quartos num lote de 360 m². Atualmente, por conta dessas 2 regras apenas, são necessários 3 lotes de igual tamanho para construir os mesmos 16 apartamentos. Não me surpreenderia se o custo atual fosse 10 vezes maior, mesmo corrigindo-se a inflação, basicamente pelo custo dos terrenos, das fachadas, estrutura, elevadores e outros decorrentes da altura e obrigações legais.


Mas não sofrem apenas os custos dos apartamentos. O pior são os efeitos de se ter pouca gente (talvez 5 vezes menos gente) morando em cada quarteirão, em cada bairro. Nada compromete mais a chance de sucesso de uma cidade do que a uma baixa densidade, na medida em que densidades baixas não atraem comércio de rua, nem restaurantes, cafés, nem consultórios, escritórios e outras atividades que não apenas criam empregos perto das residências, mas contribuem para a segurança pública.


São o que Jane Jacobs chamava de "olhos da rua": os comércios, restaurantes e escritórios que mantinham pessoas transitando pelos passeios, as luzes acesas e os bandidos afastados (o exato oposto do que um shopping center faz por um bairro).


Onde há densidade, a conta fecha para o metrô, para os bondes, para as bicicletas, para o tempo de deslocamento de casa para o emprego. A conta fecha para escolas, universidades, clínicas e hospitais, cinemas e teatros, para a segurança pública, para as redes de internet e telefonia, para o abastecimento de água e coleta de esgoto e para a alimentação de energia.


Sabe por quê? Pelo ganho de escala e pela concentração geográfica, na qual todos os custos de instalação e manutenção são reduzidos por concentrados em locais mais compactos, e atendendo mais gente ao mesmo tempo.


A raiz do nosso atraso, e da degradação de nossas cidades não vem da falta de recursos, mas da escolha de nossos prefeitos e nossos legisladores pela visão de um tipo de cidade que nunca deu certo em lugar algum do planeta.


Vem de uma legislação urbanística que, ao invés de concentrar, espalha a cidade. Que, ao invés de estimular, impede a densidade. De uma legislação que, ao invés de criar condições para todos morarem perto dos empregos, expulsa as pessoas (sobretudo as mais pobres) para longe da cidade, para outros municípios.


Acho que, agora, ficou tudo muito bem explicadinho, não acha?