Favela-Bairro, 30 anos: legado do programa desaparece aos poucos  -  (crédito: EBC)

A municipalidade enxerga as favelas, e enxerga a sua população, mas não tem como prioridade transferir essa população para a cidade formal, e nem "desmontar" as favelas nesse processo

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Mano Brown é um dos fundadores da Racionais MC's. A banda de rap foi criada em 1988 em São Paulo e ganhou notoriedade falando (ou cantando) a realidade dos menos favorecidos nas favelas e periferias. A forma não importa muito (não importa mesmo). Importante são as mensagens e os alertas, sempre em letras fortes.

 

Mas quem apresenta a sua dor, apresenta sempre a sua versão da história, e histórias de dor e injustiça social precisam identificar "o culpado", aquela pessoa, instituição ou estrutura sem a qual não haveria a dor, a opressão e os problemas. Sem o perpetrador, a vida seria boa, os problemas desapareceriam num passe de mágica.

 

E essa distorção fica bastante evidente numa fala de Mano Brown, repetida e repetida ao longo dos anos, de que "as favelas são seguras; inseguro é o asfalto". A declaração vem logo secundada pela explicação: "os moradores têm um acordo, sabem o que é certo". É o mito do bom selvagem, de Rousseau.

 

 

Interessante, ninguém se lembrou de perguntar ao rapper que "acordo" é esse, nem "com quem" esse acordo é feito, menos ainda "quem garante" que tal acordo seja cumprido.

 

Talvez os entrevistadores, ao longo desse tempo, não tenham se dado conta, ou tido a curiosidade, de que essa é a explicação exata de um "regime forte", ou de uma ditadura: alguém ali tem o monopólio da força para manter uma segurança aparente, exceto, claro, para aqueles que discordam ou desafiam as lideranças.

 

Essas, invariavelmente, desaparecem em ritos sumários.

 

"O acordo", não há dúvidas, é uma imposição vertical, dos traficantes e milicianos sobre a população. É obedecer ou sair, obedecer e calar, obedecer e concordar, obedecer ou morrer.

 

 

O "opressor", o agressor externo, aqui, são a polícia e o Estado.

 

E é muito fácil de entender; tem lógica: num ambiente controlado com mão de ferro e no gatilho das metralhadoras, é a presença da polícia que desorganiza e ameaça a "normalidade" e a dominância diária das facções. É a polícia que obriga os "donos do pedaço" a defender seu território.

 

E é nesses momentos de confronto em que as mortes visíveis acontecem (porque as mortes e agressões diárias direcionadas a quem ousa desafiar o poder instituído são, naturalmente, invisíveis para os registros formais, para a imprensa e para as estatísticas).

 

Não sou uma acadêmico e, portanto, pobre em citações e referências acadêmicas, mas me lembro muito bem de um estudo realizado por algum dos órgãos de nosso município recomendando a criação de vias urbanas atravessando as favelas, de forma a levar o Estado e suas instituições (polícia, rede de energia, água, esgoto, transporte público, ambulâncias) mais para dentro das favelas, e reduzindo a distância entre o logradouro público e as moradias.

 

 

A ideia é repartir as favelas e diminuir o tamanho da bolha, reduzindo também o território dominado e sob controle das facções. Ao invés de "dividir para conquistar" a ideia é "dividir para dificultar a conquista".

 

Quanto mais artérias cortando as favelas, menores os territórios "autônomos" e sem acesso (acesso apenas a pé), maior a presença formal do Estado, melhores os serviços, mais urbanização, mais integração com a cidade formal.

 

Alguma coisa assim foi feita na favela da Serra, interligando o hospital da Baleia (Taquaril) ao Hospital Evangélico (Serra), e conectando a favela do Papagaio (Avenida Nossa Sra. do Carmo) e a barragem do Santa Lúcia.

 

É uma pena que, nos dois casos, apenas uma conexão foi executada em cada favela, preservando territórios "protegidos" (para as facções) grandes demais, e totalmente blindados contra a presença do Estado.

 

A cada dia cresce a parcela da população sob domínio das milícias e dos traficantes, desfrutando dessa "paz da metralhadora", verdadeiros reféns em liberdade condicional (com autorização para sair para trabalhar, mas obrigados a se submeter às regras ao retornar para casa).

 

 

E, se na cidade informal vale barraco colado em barraco, quarto, sala e banheiro sem ventilação natural, ausência de acessibilidade, de passeios, redes de esgoto e tudo o mais, a cidade formal, onde se poderia produzir mais (muito mais) unidades destinadas à população de baixa renda ainda luta contra o aumento da densidade, e impõe impedimentos a construções mais baratas, mais otimizadas, com banheiros sem ventilação natural.

 

Enquanto as favelas se expandem e se adensam, os legisladores combatem os fatores que poderiam incentivar o aumento na densidade, com regras elitistas como ventilação, distanciamento crescente entre prédios, desperdício da área útil e do coeficiente dos terrenos.

 

Sim, a municipalidade enxerga as favelas, e enxerga a sua população, mas não tem como prioridade transferir essa população para a cidade formal, e nem "desmontar" as favelas nesse processo.

 

O foco da municipalidade e dos legisladores municipais está, com honrosas exceções, em regular a construção de prédios de alto e médio padrão, como se a baixa renda já fosse um problema dos outros municípios da Região Metropolitana.

 

A solução não é habitação popular no Aeroporto Carlos Prates, mas a simplificação das regras atuais, da permissão para construção de prédios sem afastamentos, de aumento do potencial construtivo. O setor privado tem condições e interesse de prover mais e melhores apartamentos (e num menor tempo) do que o setor público.

 

A solução para moradias está no mercado imobiliário. A solução para as áreas públicas (parque, praças, avenidas, metrô) está no poder público. Cada parte faz o que sabe fazer, e o que tem a obrigação de fazer.

 

E o Mano Brown, que morava no bairro do Capão Redondo quando fundou os Racionais MC's, mora onde, hoje? (Dica: não confundir a festa dos 54 anos com o seu endereço atual).