Morro do Papagaio, em BH -  (crédito:  Bruno Silva/mídia ninja)

Morro do Papagaio, em BH

crédito: Bruno Silva/mídia ninja

Tem coisa que incomoda de verdade, e tem coisa que a gente diz que incomoda, só para ser bem percebido na conversa e nas redes sociais.

 

Vou dar um exemplo: favelas.

 

Todo mundo diz se importar com favelas, mas trata como se fossem um fato da vida, uma “condição da existência” e uma coisa “que sempre esteve lá”. Sim, sempre esteve lá, porque já existia quando você nasceu, mas não quer dizer que não tenha dobrado de tamanho, invadido cursos d’água e reservas ambientais, subido o morro, dobrado sua população e turbinado a insegurança diária contra seus próprios cidadãos.

 

É isso tudo, e é também um território onde o cidadão não é alcançado pelos serviços e pela institucionalidade, institucionalidade essa que, ao fim e ao cabo, o próprio morador ajuda a sustentar com os impostos embutidos em cada compra que faz. Todo santo dia.

 

 

Cabe lembrar que esse “estado dentro do estado” evoluiu (evoluiu?), de uma “ocupação subnormal”, para um protetorado sob a lei marcial dos traficantes e milicianos.

 

 

A favela é aquele lugar que, de tempos em tempos, é celebrada numa novela ou em algum programa televisivo pela existência de, pasmem, uma “comunidade empreendedora”, como se o resto do país não fosse pródigo em “auto-empreendedorismo”, um eufemismo bem brasileiropara auto emprego com CNPJ. Tem comércio, claro, e tem serviços, até porque tem densidade e alta demanda por conveniência local (como qualquer bairro mais denso também tem).

 

A vantagem competitiva, ali, é que se pode operar à margem da lei, sem alvará de construção, sem alvará de funcionamento e, o melhor (ou pior), de forma totalmente informal, porque totalmente livre de fiscalizações de qualquer natureza.

 

E é, também, o mesmo local onde as leis urbanísticas são solenemente ignoradas pela prefeitura, e a responsabilidade técnica pelas obras solenemente ignoradas pelo Conselho Regional de Engenharia (CREA), que deveria fiscalizar e garantir que as construções sejam seguras, e conduzidas por um profissional habilitado. Sim, todas as construções são ilegais e, por certo, inseguras, porque construídas em sua maioria em setores com alto risco geotécnico, sem fundações adequadas e estrutura erguida sem cálculo estrutural, só “no sentimento”. Estão escoradas umas nas outras, num dominó que já vê “peças” com 4, 5 pavimentos.

 

 

Você passa pela Avenida Sra. do Carmo? Já se deu conta dos pequenos prédios de 3, 4 e 5 andares que vão surgindo? E os comércios? Você acha que a legislação urbanística, as exigências ambientais e as normas técnicas para execução de obras vem sendo observadas? Será que a secretaria de saúde e o CREA têm ido lá fazer inspeções?

 

Quer um outro exemplo? Córregos, cursos d’água e linhas de drenagem.

 

Quem, em sã consciência, não defende o meio ambiente e não valoriza a natureza? E quem, em sã consciência e com um mínimo de senso de realidade, não conhece córregos, cursos d’água e linhas de drenagem que são cinicamente seviciadas, amparadas por “estudos ambientais” medidos em quilos de papel e suportados pela legislação mais exigente do planeta?

 

Empresas contratadas, estudos feitos, o poder público, seus departamentos e seus técnicos mobilizados, comitês, conselhos e licenças emitidas, mas os córregos, cursos d’água e linhas de drenagem, coitados…

 

Você já conhece o bairro Céu Azul? Pois é, esse bairro fica numa das “cabeceiras” da Lagoa da Pampulha, e por isso concentra vários “contribuintes” da Lagoa. Um pequeno giro, e pode-se ver o tratamento que os córregos e cursos d'água recebem, as invasões às suas margens, o despejo do esgoto in natura, as ruas e avenidas roubando as margens, transformando cada córrego e curso d’água em uma calha de esgoto a céu aberto - exatamente como numa favela.

 

 

Já foi ao Buritis? Ao Estoril? Já se deu conta que a Rua Paulo Piedade Campos e o Aqua Residence Club (vejam o cinismo do nome) ocupam as margens e a calha do córrego e do destino da drenagem de uma boa parte daquela região? Que um trecho da Avenida Carlos Goulart, nem tão antiga assim, existe sobre onde, antes, existia o córrego?

 

E que este córrego, amassado e estragado, é um dos contribuintes da callha de drenagem existente na Avenida Tereza Cristina, exatamente nos trechos que sempre transbordam, ano após ano?

 

Eu poderia passar o resto do ano elencando situações surreais como essas, mas já deu para entender o espírito, certo?

 

As mazelas da cidade, a má condução do urbanismo, a falta de visão e a política pequena te incomodam mesmo, de verdade, ou é apenas indignação seletiva e engajamento nas redes sociais?