Assisti, no último sábado, ao filme “Ainda Estou Aqui”, com Fernanda Torres e Selton Mello. História pesada, atores incríveis, roteiro caprichado, filmografia de primeira. Tocante, a gente sai do cinema entristecido pelas vidas perdidas, mas também um pouco envergonhado pela vida mais do que normal que a maior parte da população brasileira levava, alheia ao que acontecia nos porões e nos tribunais.
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Impossível sair do cinema sem fazer um paralelo com o momento brasileiro atual. Melhor, dois paralelos, o primeiro comparando a “democracia cancelada” de então com a “democracia quebrada” de agora. Em comum nesses dois tempos, a censura de fato, a relativização do devido processo legal e uma proximidade exagerada - e inconstitucional - entre poderes da república, que jogam num nível de sincronismo e produzem uma tabelinha que faria inveja à seleção brasileira de 1970.
O segundo paralelo, claro, são os grandes temas dessa nossa coluna: cidades, habitação e arquitetura.
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O BNH (Banco Nacional da Habitação) foi estabelecido com a Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964 como uma das primeiras medidas da ditadura, pelas mãos do presidente Castelo Branco. Seu objetivo principal era financiar a construção de moradias para a população de baixa renda, num país que, passando por um processo de industrialização (tardia), assistia a um forte deslocamento da população para os centros urbanos. Junto do BNH, vieram as COHABs (Companhia de Habitação Popular), para conceber e implantar os conjuntos habitacionais de baixa renda nas maiores cidades.
E implantaram, no Rio, a Cidade de Deus, o Conjunto Habitacional de Bangu, o Conjunto Habitacional de Santa Cruz e o Complexo do Alemão. Em São Paulo, a Cidade Tiradentes, o Conjunto Habitacional da Cohab, o Conjunto Habitacional Vila Nova Curuçá, o Conjunto Habitacional Parque São Rafael, o Conjunto Habitacional da Cohab de Ermelino Matarazzo. Em Belo Horizonte, o Conjunto Habitacional Vila Pinho, o Conjunto Habitacional Dona Clara, o Conjunto Habitacional Taquaril, o Conjunto Habitacional Jardim Vilar, o Conjunto Habitacional Santa Efigênia, o Conjunto Habitacional Morro das Pedras, o Conjunto Habitacional Cabana do Pai Tomás, o Conjunto Habitacional Parque Industrial, o Conjunto Habitacional Vila Fátima, o Conjunto Habitacional Aglomerado da Serra, etc, etc.
Houveram outros, e houveram sempre, em menor escala, até a criação do programa MCMV (Minha Casa, Minha Vida), pelo presidente Lula por meio da Lei nº 11.977, em 7 de julho de 2009, e posteriormente “turbinado” pela presidente Dilma.
Em comum aos programas e aos momentos (o segundo paralelo que faço), conceito errado (bolsões de pobreza nas periferias), péssimos projetos ( urbanística e arquitetonicamente falando), localizações mais impróprias impossível (em periferias distantes e sem infraestrutura), precariedade de transporte urbano de massa, ausência de infraestrutura urbana (comércio, educação, saúde, lazer).
A visão implementada partia - e continua partindo - de um vício comum, a de que moradia de baixa renda se limita à unidade habitacional, e a solução à construção da quantidade necessária.
Não por acaso, nenhum funcionou, todos se favelizaram e foram dominados pelo tráfico com o tempo, e a exclusão social se acentuou de forma palpável, e mensurável. A questão, que era municipal, se transformou em problema metropolitano, e os custos de transporte público e integração explodiram.
“Ainda Estou Aqui” trata de uma realidade de exclusão urbana em processo de montagem (no qual a empregada doméstica precisava dormir no trabalho), enquanto os anos 2020 mostram o resultado dessa mentalidade, desse jeito de pensar e fazer a cidade. Em 2020, os piores pesadelos já estão consolidados, e muito embora a política atual tenha “sinal trocado” com a do período da ditadura, o pensamento e a prática do que seja uma cidade são rigorosamente iguais.
E aí, fico pensando que a tese da ferradura (na política) faz todo o sentido, porque nos extremos, os uniformes, as bandeiras e o discurso mudam, mas a sanha pelo planejamento central, por idéias mágicas e por movimentos “coordenados pelo poder público” fazem com que a prática seja sempre muito parecida. Fico pensando, também, que nos extremos (da política), quando o debate é controlado, as idéias são suprimidas e vozes caladas, as práticas acabam sempre sendo iguais.
Em comum aos dois momentos da história, a falta de visão. Em comum, formuladores de políticas públicas pretensiosos; Mestres, Doutores e PHDs que mais conhecem o mundo pelas lentes da teoria, quase sempre eivados pela ideologia, sentados atrás de uma mesa, expedindo “planos” e “ordens”.
A cidade que funciona (e que sempre funcionou), é a mais compacta e mais densa, e com menores distâncias a percorrer; é aquela que apresenta menos restrições urbanísticas e maior incentivo ao empreendedor privado. Ao poder público, sabemos, basta indicar para onde está olhando, não criar dificuldades e providenciar a infraestrutura necessária.