
Muito barulho por nada. Será mesmo?
Numa cidade, o silêncio é subestimado, para não dizer ignorado, mas uma boa noite de sono é fator crucial para a saúde de qualquer pessoa
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William Shakespeare é celebrado como um dos maiores escritores de língua inglesa. Para alguns, o maior dramaturgo da história, e é dele uma peça (um livro) chamada “Muito Barulho Por Nada” (Much Ado About Nothing).
A comédia se passa em Florença, numa trama leve entre apaixonados, que são levados a pensar que o romance não tenha futuro por conta de intrigas meio rocambolescas. Numa época em que a fofoca e as fake news ainda não eram tratadas como crimes hediondos ou ameaça à democracia, a confusão acaba esclarecida, as intrigas desfeitas e o casal reatando ao final.
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Nate Silver joga luz - e descreve de forma didática - a diferença entre o que é, e o que parece ser, no espetacular livro “O Som e o Ruído”. E é na fenda entre um fato e uma distração que políticos populistas, golpistas, trambiqueiros e pessoas mal-intencionadas prosperam. É, como se diz no jargão financeiro, na “arbitragem” entre o fato e uma versão que se parece com um fato. É na assimetria entre a verdade conhecida e a ignorância alheia que a esperteza floresce e encontra uma vítima (ou várias, num dia de sorte).
Mas, numa cidade, nada disso importa, porque tanto o som quanto o ruído minam a qualidade ambiental e transformam a cidade num fator de estresse e degradação da saúde física e mental de seus cidadãos. Sim, falo do barulho desmedido das motocicletas, dos carros com escapamento aberto, dos ônibus com motor de caminhão e câmbio manual, mas, sobretudo, de pilotos e motoristas que parecem se divertir atrapalhando o sono dos moradores, sempre acelerando, fazendo o maior barulho possível.
Mas há, também, os vizinhos que não respeitam a lei do silêncio e o horário-limite determinado na legislação. O mau gosto musical, a histeria coletiva e os palhaços de plantão são o espelho de uma população que desconhece conceitos como educação e respeito. Não têm, claro, qualquer senso de comunidade.
Se ignorantes, sádicos ou insensíveis, pouco importa. O fato é que a saúde do ser humano é íntima e diretamente relacionada à qualidade do seu sono. Não há parque, praça, cultura e urbanismo de qualidade que sejam capazes de compensar uma cidade barulhenta e a falta de respeito de uns poucos por toda uma comunidade.
Mas o problema não é local, ou sequer brasileiro. Por alguma razão, alguns marcos civilizatórios que se presumiam “garantidos”, precisam ser recorrentemente reafirmados via coação, para que sejam mantidos. A diferença entre as cidades não é a sua população, mas a forma como seus gestores encaram os desafios e as decisões que cada um toma.
Tomemos Paris, a "cidade-luz", como exemplo: embora o parisiense não tenha a mesma obsessão que o brasileiro por escapamentos abertos e ônibus do início do século XX, e mesmo que a preferência dos motoqueiros europeus seja por lambretas e pequenas motos urbanas (mais silenciosas do que a tecnologia de 1970 “made in Manaus” vendida em Pindorama), ainda assim o parisiense vinha dormindo mal, muito mal, por décadas.
A solução encontrada pela prefeitura foi a instalação de radares de som, equipamentos automáticos dotados de sensores de ruídos e câmeras, que, a exemplo dos radares de velocidade, registram automaticamente multas aos infratores, no caso, por gerar ruídos acima do permitido num determinado horário.
Segundo a prefeitura, um veículo barulhento transitando durante a madrugada tem o potencial de incomodar 10 mil pessoas num trajeto típico. Imagine que não seja um, mas um monte de veículos transitando por toda cidade, durante a madrugada, atrapalhando o sono de blocos de 10 mil pessoas. Imagine caminhões transportando caçambas, concreto e materiais de construção chegando aos bairros às 5:30 ou 6:00 da manhã, vindo dos municípios vizinhos ou da periferia, de onde saíram, provavelmente, às 04:00 da madrugada.
De quem deve ser a preferência nesse caso? Das dezenas - ou centenas - de milhares de cidadãos, ou de uns poucos indivíduos, trabalhadores por certo, mas nem por isso dignos de tratamento especial ou de uma tolerância particular?
A pergunta é, obviamente, retórica, e a resposta é uma só: a população tem direito a uma boa e saudável noite de sono, não importando o bairro, a classe social, a qualidade da habitação.
A população tem direito. Ponto.
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.