Um neném, atrás de mim, paramentado de Cruzeiro, se aventurava nas primeiras palavras. Balbuciava, repetidas vezes, algo parecido com “cu-ze-lo”. Justamente quando eu me encantava com aquela sonoridade infantil, o volume da televisão ficou estridente. O narrador gritou mais um gol do Athletico Paranaense.

Olhei ao redor e percebi todos desolados em suas mesas, no reduto Sampa Azul, bairro de Pinheiros, em Essepê. Voltei minha atenção para o garotinho. Sua mãe, sendo mãe, se dedicou à missão de não deixar o ambiente de desalento contaminar a pureza do filho. Amparado por ela, ele arqueava os joelhos e seguia cantarolando o “cu-ze-lo”, alheio a mais um vexame cruzeirense.

 

 

Quando o tradicional vento frio paulistano derrubou a temperatura, me vi tomado por uma pergunta a gelar minha espinha: quando foi que o “complexo de vira-latas” se estagnou como nuvem densa e inerte sobre a alma do atual escrete do Cruzeiro?

 

A expressão “complexo de vira-latas” é uma das pérolas literárias criadas por Nelson Rodrigues, o maior cronista de todos os tempos, para definir de forma genial o clima de inferioridade que se abateu no Brasil após a catastrófica derrota para o Uruguai na final da Copa do Mundo de 1950, em pleno Maracanã.

 

Em 31 de maio de 1958, em sua coluna na revista “Manchete Esportiva”, Nelson Rodrigues escreveu: “Eis a verdade, amigos: desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro [...] A pura, a santa verdade é a seguinte: qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de ‘complexo de vira-latas’.”

 

O juiz apitou o fim da peleja: 3 a 0 para os paranaenses. Dei “tchau” para o neném, que me olhava alegre, claro, repetindo o seu “cru-ze-lo”.

 

A derrota já nem doeu tanto. Esse é o problema... Estamos sendo contaminados por um time que não nos passa o sentimento de que é inaceitável a passividade diante dos reveses. Não condiz com a história do Palestra/Cruzeiro a forma “sem sangue na veia” como jogamos a primeira partida contra o Lanús, quando os jogadores deveriam tê-la encarado como uma batalha sul-americana de vida ou morte.

 



 

Segui molhado pela garoa. Tentando entender como atletas que têm a oportunidade de defender o Cruzeiro, um dos maiores clubes do mundo, são capazes de não acreditar em si mesmos? Explicaria, Nelson Rodrigues: “Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: ‘O Brasil não vai nem se classificar!’ [...] Eu vos digo: o problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo.”

 

Mas, na Copa do Mundo de 1958, surgiu um escrete determinado a não aceitar mais a vergonhosa alcunha de Brasil vira-latas. Disse, Nelson: “O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender lá na Suécia. Uma vez que se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota. Insisto: para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão”.

 

A questão foi que o mundo assistiu o ressurgir de um gigante incontestado chamado Brasil! Ao conquistar a Copa de 1958, o escrete nacional trouxe de volta ao país o orgulho de ser brasileiro, jogando futebol como se estivesse no campo de guerra defendendo a nossa bandeira.

 

 

Hoje à noite, no estádio La Fortaleza, na Argentina, será a maior chance da vida dos atuais jogadores do Cruzeiro para provarem que não são vira-latas. De jogar com sangue nas veias e entenderem, definitivamente, que o único complexo-obsessão que cabe a quem veste o nosso manto sagrado é o de ser multicampeão.

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