Sexta-feira. Gosto de começar o dia com calma. Estava tomando meu café da manhã enquanto rolava o feed do Twitter - talvez eu não goste de tanta calma assim, vou levar para a análise - quando vi um corte de um reality show que as pessoas se conhecem e podem se casas às escuras e algumas mulheres com aparência bastante artificial (para estarem dentro do padrão, acredito) debochavam de um homem porque ele é calvo. Isso já me irritou. Segui. Outro corte do programa, de um homem dizendo que a mulher tinha “voz de gorda”.

 

Pensei: igual a Alcione? A Adele? Uma integrante do Fat Family? Ou a minha? Sei lá. Nunca tinha parado para pensar que gorda tem alguma voz diferente. Aproveitei para anotar meu sonho no bloco de notas. Rolei mais um pouco. Um filme feito com IA mostrando um gato, sim, um gatinho, pet, sofrendo bullying por ser gordo e, “se esforçando” para entrar no padrão. Indo à academia e emagrecendo. UM GATO! Usaram um gato, a porra de um desenho de um gato para isso. 9h da manhã e o que era para ser um momento de calma já era puro suco de ódio, tristeza e ansiedade.

 

Óbvio que eu devo mudar meus hábitos. Ao invés de comer dois ovos mexidos de manhã enquanto rolo o feed do Twitter, eu devo comer dois ovos mexidos de manhã enquanto leio algum livro. Acessar redes sociais, ainda que seja atrás de notícias, me fez mais mal do que qualquer caloria ingerida nessa manhã. Mas, esse não é um texto sobre redes sociais e o quão adoecedoras elas são! Poderia, claro, mas não tenho energia para chover nesse molhado, então, vou chover em outro: como é viver a vida se sentindo uma aberração?!

 



 

Sim! É assim que eu me sinto, na maior parte do tempo. Ainda rolando o feed nesta manhã, esbarrei numa história de um brasileiro na Suíça que, num estabelecimento, conheceu a filha do prefeito de uma cidade e viveu um tórrido romance com ela. Ele fez uma thread sobre como se conheceram, como ele é duro, como eles transaram em locais públicos a pedido dela. A postagem tem fotos dela com o rosto coberto. Uma hiperexposição de uma história que viraria, facilmente, um romance num canal de streaming. Mas, o que me pegou mesmo foi pensar que estou à beira dos 40 anos e do momento que penso nas coisas que nunca viverei: essa é uma delas.

 

Qual a chance de alguém, num corpo como o meu: gordo, imenso e calvo - conhecer alguém espontaneamente num barzinho na Suíça e viver dois dias de sexo e romance intensos?! O amor não olha pra mim. O desejo e a atração também não. Eu poderia ser a única pessoa disponível ali. A outra pessoa iria embora sozinha porque ela simplesmente prefere estar só do que se permitir um corpo como o meu. E não, eu não acho que tenha algo de errado com meu corpo.

 

(Aqui eu sei que você vai pensar: não tá satisfeita? Emagrece! Ah, mas é uma questão de saúde. Mas é questão de gosto. Ah, então agora sou obrigado/a/e a gostar de pessoas gordas romanticamente? Era só o que me faltava. Não gosto mesmo e foda-se, não é problema meu. Pessoas gordas que se fodam, eu não tenho nada a ver com isso. Não quero pensar refletir sobre esse tema, eu sou padrão, graças a Deus. Quanto mimimi. Faz um implante capilar. Usa uma peruca. Coloca uma lace) Pronto!

 

Agora posso dizer que eu sinto seu olhar de nojo para mim. E que isso me entristece. Ser uma pessoa gorda e calva não foi uma escolha minha. Apesar disso, não acho que seja um problema. Estranhamente, me acho bonita e me sinto bem comigo mesma. Eu gosto de quem eu sou. Sou interessante, divertida. Uma pessoa gostosa. Sei que é bom estar perto de mim mesma. Porém, sei, porque eu vejo nos seus olhos, que você tem nojo de mim. Tem medo de se aproximar. Quer minha companhia, mas quer de longe. Já pensou se te veem comigo? Ta! Uma foto. É legal ter uma foto.

 

Eu cumpro parte do seu fetiche de ter amigues de todos os jeitos. Mas é só uma foto. Não dá para ser em todas. Não dá para ser em tudo. O que vão pensar de você? Você quer minha companhia, mas tem que ser num café, num almoço, para que pensem que é uma reunião de trabalho. Nada mais que isso. Já pensou se pensam algo? Não dá. Você gosta de mim, mas, acha que eu sou negacionista. Que eu não me cuido o suficiente. Que é histeria. Que eu deveria malhar mais e comer menos. Fazer uma bariátrica talvez? Você até fantasia sobre como minha vida seria mais fácil se eu fosse magra. Você até poderia me desejar. Eu seria incrível. Mas, gorda assim e calva, realmente, não dá!

 

Existe um abismo entre eu me sentir bem comigo mesma e o fato de me saber solitária. Indesejável. Repulsiva. Qual psiquê aguenta tanto tempo de rejeição? Tanta solidão? E a gente segue correndo atrás do rabo. Você vai me dizer: mas é só emagrecer que passa. O mundo é assim mesmo, temos que seguir alguns padrões. E eu vou pensar: que mundo é esse em que uma pessoa que está fora do padrão tem toda sua subjetividade anulada e é desprezada e indesejada por toda uma vida por conta de um corpo gordo?! E de uma cabeça calva.

 

Um dos comentários do Twitter dizia: mas calvo nem é gente. Como se eu não soubesse. Ser uma mulher cujos cabelos começaram a cair em razão de uma alopecia genética quando eu tinha pouco mais de 20 anos me mostram, diariamente, como é ser um corpo lido como repugnante socialmente. A desumanização fragmenta a subjetividade. Seria estranho se eu não sofresse com ansiedade constante ou depressão. Me manter viva, radiante, solar e produtiva é quase um milagre num mundo que berra na minha cara o tempo todo: VOCÊ NÃO É GENTE!

 

A calvície é lida como uma falha moral. Um desvio de caráter. É algo como se fosse possível alguém escolher: ah, vamos lá. Vou ser calvo. Vou sofrer preconceito. E aí dizem: ah, mas é só fazer um implante. Primeiro que os preços mais em conta custam em torno de R$ 20 mil. Num país cujo salário mínimo é um pouco mais de R$ 1 mil, não me parece algo tão acessível. E, ainda que fosse, mulheres, por exemplo, não são indicadas ao transplante capilar, restando, apenas, o drama de ser uma pessoa apontada como falha ética e estética.
Poderiam dizer: mas use uma lace. Ponha uma peruca. Vale tudo para não expor esta falha gigantesca moral e de caráter. Não! Eu não quero mais disfarçar a calvície. Eu assumi minha careca, com a cabeça raspada. Sou olhada diferente. Me perguntam meus pronomes. Me chamam de senhor. Me olham com ainda mais nojo.

 

Não! Eu não vou emagrecer. Isso vai me custar amizades, a ausência de qualquer tipo de afeto romântico. O ódio que sinto toda manhã quando rolo o feed e vejo que até a IA é usada para a venda de emagrecimento compulsório. O seu olhar de nojo quando me vê. O seu desprezo por mim numa festa ou num barzinho na Suíça. Eu sei que isso vai me custar uma vida de privações. E sei também que me perceber, com tanta lucidez que chega a ser obsceno, é incômodo para caramba. Sei que eu dizer disso é indigesto. Que eu fico menos legal e palatável quando escancaro esse véu do bom mocismo. Quando te digo: piadas com pessoas calvas me machucam porque eu tenho uma condição que me fez perder os cabelos e isso não é culpa minha.

 

Mas eu também sei que você está pouco se fodendo para isso. Que, diariamente, agradece a um Deus punitivista pela sua superioridade genética por ser uma pessoa com cabelos e magra e pela sua superioridade moral, debaixo da sua estética progressista, afinal, você até emprega pessoas negras e LGBTQIA+ e sofre muito, sendo uma pessoa dentro da sigla. O problema é meu por ser vista como uma aberração. Você também acha que eu sou. Mas até já se acostumou. Gosta do meu humor ácido. Da minha sagacidade. Da velocidade com que escrevo textos de qualidade. Só não tolera meu corpo. Eu bem que poderia habitar um outro, né?! Mas, problema meu. Eu que me esforce para isso.

 

Sim! Esse texto tem a exata raiva que me queima a boca do estômago logo cedo nessa sexta-feira. Ainda estou aprendendo a organizar a raiva. Não sei se um dia conseguirei. Sei que me sinto solitária e triste. Pensando em como é cansativo tentar existir num mundo que simplesmente tenta sufocar a minha existência o tempo todo. Com frequência, me falta o ar. E não é porque eu sou gorda. Mas porque eu não consigo respirar até o próximo segundo, e o próximo, e o próximo e continuar existindo sendo a monstruosidade que sou.
Viver como uma aberração é cansativo. Penso que até os monstros gostariam de um pouco de afeto romântico, por vezes. Ou de se sentirem amados, mesmo sendo monstros. Acho até que alguns, como eu, se amam. E amam muito quem cruza-lhes o caminho. Mas estão cansados de amar sozinhos. Eu estou. Acho que a falta de ar pode ser ansiedade. Ou exaustão.

 

Penso no que adianta ser uma monstrona muito legal e me sentir solitária na maior parte do tempo?! Eu aprendi a me divertir sozinha, mas por que sou privada de me divertir acompanhada?
Já escrevi sobre Deus não gostar das pessoas gordas. Sobre as pessoas nos odiarem. Sobre como é ser uma monstruosidade. Já esgotei meu repertório intelectual. E sigo, sendo monstruosa. Uma aberração. Sem caber em lugar algum. Só no seu riso e nas suas piadinhas sobre pessoas calvas e gordas. Eu sigo. Monstruosa e só.

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